in loco - cobertura do É Tudo Verdade

Aterro do Flamengo,
de Alessandra Bergamaschi
(Brasil, 2011)
por Juliano Gomes

Paragem

A força que emana de Aterro do Flamengo vem da forma como sua estrutura reconfigura os problemas que o filme mostra. Trata-se de um plano geral único, feito de uma varanda (ou janela) distante da cena, que mostra por 40 minutos o corpo estático de um homem, numa pose ambígua (poderia estar alongando, dormindo, enfim), vestido com roupas de ginástica, num parque onde há aparelhos para exercícios. O filme vai narrar o que acontece e o que não acontece com esse homem (ou melhor seria “com esse corpo”?). Uma primeira forma de recusa ao que o filme mostra seria a de distanciar-se dele por excesso de formalismo (há sim uma forma sólida, e de alguma maneira impassível, diante de uma cena que produz drama).

Mas o que é o formalismo? É quando a maneira de estruturar a obra se sobrepõe a ao que mostra? Ou quando novos problemas são mostrados de uma “velha maneira”? A forma como o filme de Alessandra Bergamaschi responde essas perguntas é o que interessa aqui, assim como algumas questões que daí podem desdobrar. Aqui há claramente recusas: de abandonar o filme e ir lá “fazer alguma coisa”, de fechar mais a imagem para “ver mais”, de tentar aumentar uma sensação de presença. A banda sonora do filme nos dá a impressão de distância: ela se refere ao espaço onde a câmera está postada, e não ao espaço que o quadro mostra, ela adensa a cena dando-lhe dois palcos e dando a ver uma relação que se estabelece entre estes dois pontos: há alguém que vê, e há algo que é visto por alguém desta maneira). E essas recusas avançam para algo positivo, para uma afirmação da força de encenação contra a divisão corrente do realismo e subjetivismo, presença e onisciência, verdadeiro e falso, culpado e inocente.

O que esta forma produz? O plano fixo, essa fixação do olhar que o filme produz, é a posição que toma em relação ao acontecimento que mostra (e esconde). O que ele narra é a transformação de um “homem” num “corpo”, pelo olhar. Num primeiro momento, há alguém que não se move. A duração do plano, sua fixidez, e também a do corpo, começam a nos fazer duvidar. Duvidar da presença da vida naquele corpo. E essa relação vai se construir bastante pelo que essa fixação nos dá a ver. Não há rostos nem contornos claros. Há figuras, não há indivíduo, ou identidade. O olhar procura o que se move no quadro. De alguma maneira temos aí uma figura que se torna paisagem com o tempo; m cadáver torna-se espaço. Se decompõe na imagem, mas subsiste e persiste como presença.

Quando passa alguém, paramos de olhar para ele. E começamos a olhar como essa figura que pode se mover se relaciona com a figura que não se move e se torna fundo. O cadáver se coloca em estado de intermitência durante todo o filme: pelo plano geral, que por sua abertura mostra uma determinada porção de espaço que nos permite mapear as relações que se estabelecem na cena entre os que passam por perto. O tempo todo há uma oscilação entre a passividade e fixação. O que fazem os que se afetam com o morto: param e olham, fixamente. O corpo parado pára os outros corpos. A morte se espalha no quadro assim: na medida em que faz cessar o movimento, e a procura do olhar é atraída para outros pontos. O enquadramento teoricamente “vigilante” só faz ressaltar o caráter provisório e oscilante do que mostra. Se trata muito mais de esconder e revelar aquilo que só se pode ver a distância.

A partir do momento que se sabe que se trata de um cadáver (ao final do filme parece bem pouco provável que se trate de uma performance produzida diretamente pela produção do filme – na verdade, ela é produzida, mas como operação do olhar), tudo se ressignifica. A morte questiona tudo. Ela é a certeza, uma espécie de presença do absoluto que torna tudo drama e comédia, ao mesmo tempo. Diante de sua impassibilidade e serenidade (de fim certo de todo e qualquer caminho), cria-se uma teia de relações entre o que está na imagem. É hilário e macabro ver as pessoas fazendo abdominal ao lado daquele corpo, e o absurdo daqueles gestos repetidos toma a imagem: toda a luta do homem contra seu destino inexorável, sua comédia e sua tragédia tomam forma ali, numa seqüência de abdominais.

Não se está falando aqui da imagem como prova, com uso incriminatório, que busca culpados. Mas sim de uma operação de enquadramento que vai transformar uma cena insólita em uma bela reflexão sobre a relação entre a morte e uma imagem em movimento. Não se trata de culpar nosso atleta de insensibilidade ou falta de compaixão: a verdade é que morte nos constitui e constitui toda imagem. Como vai afirmar Maurice Blanchot, a imagem possui uma dimensão cadavérica na medida em que se parece a coisa, mas já não é ela que vemos – apesar de semelhança absoluta, há um vazio que ressoa ali. É o máximo da morte que é dado experienciar a nós vivos: sua imagem.

É disso que se trata aqui (não por acaso, por fim cobre-se o morto com um grande pano, inviabilizando seu poder fixação e o escancarando sua dimensão “estética”). Antes de tira-lo dali, é necessário parar o seu poder como imagem. O cadáver vai se tornar ao longo do filme uma espécie de buraco negro que parece tragar o sentido de toda e qualquer relação à sua volta. Simplesmente porque sua ausência de reação é sua grande força. A encenação e as cartelas que formam Aterro do Flamengo vão se ocupar de escancarar o teatro do absurdo que é a vida, em sua trágica falta de finalidade. Os atos que compõem o filme mostram a inviabilidade de uma divisão daquele ocorrido num sentido dramático.

O filme transforma o que mostra, e transforma justamente mostrando, se ocupando disso, tendo atenção, e assim, dando a ver as inúmeras tensões que vão tomar a cena, fazê-la dramática e burlesca, enfim absurda e potente. A fixação da câmera vai gerar estranhamento e desnaturalizar (e provavelmente a morte é nossa única natureza) a cena apenas para de novo naturalizá-la, colocando essa oscilação como força do filme. São duas dimensões em choque durante o filme, sempre. E essa é a dimensão do olhar, do enquadrar: tornar o mundo cena, perceber essa dimensão que reside nele mas que é preciso fazer ver. O poder de fascinação da morte e do cinema reside exatamente nessa dupla dimensão, de estar e não estar, nessa permanente oscilação entre a presença da coisa e à presença à sua ausência (e os graus de diferença entre as duas).

O filme de Alessandra Bergamaschi encena um olhar que produz cena, que coloca elementos em relação, pela operação simples de enquadrar, de dar limites, de cortar o espaço, e através de suas arestas criar um jogo de forças, que amplifique o que se mostra. Ao final, há um longo trecho de tela escura, como que encenando sua própria morte e nos questionando de sua própria presença que acaba de se esvair, e de seus possíveis desdobramentos em nós que estivemos ali diante dessa imagem. Somos colocados na cena, questionados pela interrogação sobre a diferença de ver, sobre o fascínio de todo o desaparecimento e aparição. Um jogo de encenação, enfim, que o filme parece fazer ecoar para dentro e para fora dele, em nós, em nosso olhar. Esse é justamente seu grande feito, fazer olhar para a cena não como falsificação, mas como uma fonte de múltiplas relações que emanam de dentro, que emanam de sua condição de imagem e de drama, se devolvendo ao mundo, de onde foi sacada, para fazer vê-lo melhor.

Abril de 2011

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