Até que a Sorte nos Separe,
de Roberto Santucci (Brasil, 2012)

por Raul Arthuso

Humor? Horror...

A questão é de postura: a comédia é um gênero, um modo de aproximação às coisas. É cabível ao gênero o artifício, a técnica, a prática, os atalhos, um savoir-faire. Não surpreende, então, que Até que a Sorte nos Separe seja um desenrolar de esquetes com piadas de gordo na academia, gordo vestido com roupas de ginástica, gordo comendo doces... bem, piadas com gordo a granel para permitir à sua estrela, Leandro Hassum, brilhar; piadas de madame com botox e silicone, problemas sexuais do vizinho inteligente über racional, a presença indefectível da bichinha. Com esta base, não é o caso de o filme descobrir uma moral, pois ela já está lá no começo (quando, ao ganhar na loteria, o casal protagonista promete não deixar o dinheiro interferir em sua felicidade). As cartas já estão marcadas. Também não se trata de elogiar o homem simples e a pobreza, pois o importante é ser feliz, melhor ainda se for com dinheiro – e a figura de Amauri, consultor financeiro, é uma espécie de reserva de consciência: se sua moral não é perfeita, pelo menos é mais eficiente. E, também, não é um filme de negação de nada: os hábitos do novo rico, o expertise administrativo das contas do lar, a família burguesa, o sentimentalismo, o racionalismo são colocados num cofrinho – primeira imagem do filme – para uso futuro na grande conciliação final.

Sobra a essa comédia a destreza de lidar com os malabares da comédia brasileira guiando-se pelo pente fino – próprio do blockbuster brasileiro recente – da lógica do que funciona ou não. Mas o que falta ao filme de Roberto Santucci é humor. Sim, no sentido em que se fala de “bom humor” e “mau humor”. Pois, o humor é uma relação: alguém pode muito bem acordar de manhã e bater a canela na quina da cama, destruindo sua relação com seu entorno pelo resto do dia. Ou, por outro lado, acordar apaixonado, esperançoso, seu time ganhou no dia anterior, algo bom aconteceu a alguém próximo, e... tudo azul. O humor é um olhar, um jeito de lidar após a aproximação. Quando Até que a Sorte nos Separe investe no seu conjunto de códigos (o gordo, o tapado, o inteligente, a madame, a bichinha) para retransmití-los sem qualquer lustro ou arranhão em sua superfície, percebe-se que é de humor o problema - da articulação do olhar privilegiado do cinema que permite a Frank Capra olhar um mundo desolado e tirar daí uma moral da esperança (bom humor) e aos Irmãos Farelly destroçarem o tecnicismo contemporâneo num elogio da idiotia como resistência (mau humor). Foi “ter humor” que permitiu à comédia cinematográfica ser um ombudsman da História, implodindo alguns dados aqui, desarmando certezas ali. Quando um filme lida diretamente com o dinheiro, a ascensão social e a mudança de classe, mas reduz as relações de pobreza e riqueza a um jogo funcional, retirando delas seus dados mais simbólicos (e significativos), o resultado é de uma neutralidade estéril (sem humor).

É inevitável pensar na afirmação recente do crítico Francis Vogner dos Reis ao falar de Cidade de Deus, o ancestral comum dos sucessos nacionais: “O filme é uma publicidade sobre si próprio”. Isso é mais sensível quando se atina que Até que a Sorte nos Separe se faz de uma economia de trocas (um pleonasmo) entre riqueza e pobreza, sentimentalismo e racionalismo, num favorzinho aqui, uma ajudinha ali. Nessa publicidade de si mesmo, o filme se nega às escolhas, à formação de um olhar, prefere a permuta constante à afirmação, e é permissivo com qualquer efeito desde que demonstre sua funcionalidade narrativa. É um filme para agradar a dita “classe C” e seu estado transitório, mas também aliviar os ricos de sua mais-valia e alegrar os pobres de sua pureza emocional. Numa perversão de um ideal de pró-eficiência, tanto a fábula de Até que a Sorte nos Separe quanto seu modo de fazer espelham os cinco passos da cartilha pregada por Amauri ao longo do filme: organização, planejamento, equilíbrio, segurança e investimento ($). É a venda de si a todos os mercados possíveis, a custo de se abster de uma visão de mundo. Aí, então, a questão é de cinema.

Dezembro de 2012

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