nas locadoras
UMa Escola de Arte Muito Louca (Art School Confidential),
de Terry Zwigoff (EUA, 2006)
por Diego Assunção

Um cinismo apaixonado

O título original dá a idéia geral do filme: mostrar os bastidores de uma escola de arte, e ao mesmo tempo expor o seu ridículo. Com esse intuito é que se vê nos créditos iniciais a movimentação de alunos em frente à instituição, espaço onde a câmera de Zwigoff concentra esforços para expor as contradições do lugar: uma hippie desce de um carro (?) e pisa em cacos de vidros, um jovem músico deixa cair sua caixa de violão e revela que não há nenhum instrumento nela e uma jovem com pinta de rebelde, cheia de tatuagens, se despede de seus pais segurando um bicho de pelúcia. Esse é o espaço que Jerome Platz (Max Minghella), discípulo de Picasso que sonha ser o maior artista do séc. XXI, habitará até o término da projeção.

Esse começo pode sugerir apenas mais um daqueles produtos típicos do cinema independente norte-americano: um filme cínico, repleto de citações à cultura pop. O que faz de Terry Zwigoff algo além de um sub-irmãos Coen é a capacidade dele em combinar o cinismo afiado com um afeto desmedido pelo personagem. O sonho do protagonista (“ser um grande artista”) é sim, aos olhos do diretor, uma grande besteira, mas a câmera de Zwigoff parece compartilhar do mesmo brilho ingênuo expresso no olhar de Jerome. O começo do filme, que mostra, num plongée, Jerome ainda criança apanhando de um garoto ao som de “Artist’s Life”, do Johann Strauss, é um indício da capacidade do cineasta em transformar escrotidão em poesia.

Mas, de fato, o cinismo está no filme, principalmente na fala dos mestres de Jerome: Marvin Bushmiller (Adam Scott) é o artista bem-sucedido e insuportável que só fala do dinheiro que ganhou, enquanto Jimmy (Jim Broadbent) é o contraponto, o artista fracassado que vive a discursar para o protagonista sobre a importância do “boquete” para a formação de um artista de sucesso. Já as citações entram no filme como peças decorativas, igual ao pôster de Apocalipse Now, estampado no trecho do dormitório pertencente ao jovem cineasta Vince (Ethan Suplee).

A capacidade de Zwigoff em balancear pólos tão contrastantes – a caricatura e o retrato, o cinismo e o passional - o impede, por exemplo, de transformar a cena no qual Jerome vai até a casa do professor Sandiford (John Malkovich) em mais um comentário revelador sobre os bastidores da escola de arte. Ele conduz a cena de um jeito que anula qualquer julgamento moral: John Malkovich está lá a incentivar seu aluno a experimentar todos os estilos de arte e de vida, e também está a passar suas mãos no joelho do garoto – porém o plano médio também mostra o olhar atencioso de Jerome, que anseia por conselhos de seu mentor. Têm-se ali certas insinuações, mas o cineasta parece mais interessado na progressão narrativa, no calvário do garoto.

É no calvário que Zwigoff se atém, e o que parece preocupar o cineasta são as transformações pelas quais Jerome passa e de que forma ele pode acompanhá-las. Se o efeito de slow motion no início, quando Jerome adentra na Escola de Arte, é usado no momento em que sua musa inspiradora (Sophia Myles) caminha e retira a roupa para posar para os alunos; ao final, quando os sonhos vão se quebrando, o slow motion é articulado para revelar o embrutecimento do coração do rapaz, que trabalha de bartender em uma festa de gala, organizada para o artista Marvin Bushmiller, enquanto sua musa desfila com o aluno mais admirado de sua sala.

Há entrechos do filme onde o diretor trabalha as sub-tramas que, à primeira vista, parecem mal-costuradas: a do estrangulador é uma, o processo de filmagem e edição do filme sobre o caso é outra. Realmente o cineasta não parece se interessar pelas cenas dos crimes do estrangulador, tendo-as filmado de forma desinteressada, assim como parece não levar a sério os discursos niilistas de Jim Broadbent sobre o processo artístico. A trama do estrangulador parece interessar a Zwigoff a partir do momento em que Jerome sente que perdeu Audrey, sua musa – os retratos obscuros das mulheres mortas pintados por Jim Broadbent acabam servindo para exteriorizar o sentimento de morte que envolve o relacionamento de Jerome e Audrey.

Já a sub-trama envolvendo o cineasta que mora com Jerome acabam servindo para reafirmar a capacidade de Zwigoff em fazer do caricatural um retrato honesto do ser humano. A cena onde Vince tenta convencer o financiador do seu filme (que é o seu avô) de que o uso de armas de fogo no filme é desnecessário, vendo que o personagem do assassino é um estrangulador, tem o mesmo efeito daquele descrito na cena do Jerome com seu professor.

O final – assim como o início e diversas passagens do filme – sugere uma alfinetada nessa lógica que move os artistas bem-sucedidos, que sempre têm que estar imersos em polêmicas extra-carreira artística para conquistar uma posição de prestígio. A alfinetada está lá, mas também está lá a bela cena que encerra o filme, no qual Jerome reproduz o gesto impotente de beijar a sua musa através de um muro que os separa – antes ele a “beijava” ao beijar o retrato que pintara, no final ele a “beija” ao tocar o vidro da cabine de visitas da cadeia. É um beijo tão inumano quanto aquele no desenho da mulher (um vidro os separa), porém é inegável que do outro lado já existe uma mulher. O cinema de Zwigoff é como esse vidro, que une o desejo acalorado de contato humano ao mesmo tempo em que demonstra a impossibilidade desse contato – de novo a caricatura e o retrato, o cinismo e o romantismo.



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