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Max
Payne (idem), de John Moore (EUA, 2008) por Eduardo
Valente Responsável
pelo dantesco Atrás das Linhas Inimigas, John Moore opta, nesta
adaptação de um videogame de sucesso, por amontoar o maior número
possível de referências (mitologia nórdica - o criador do
game é finlandês; cinema noir; quadrinhos) e de registros
(o filme mistura uma narrativa herdeira do Death Wish de Charles Bronson
com momentos de horror regado a misticismo e ainda um tanto de discurso genérico
anti-corporações), fazendo com que a história se mova com
a sutileza e o cuidado de um elefante numa loja de cristais. Max Payne
parece não ter tempo a perder com qualquer noção simples
de construção dramática (a personagem de Mila Kunis aparece
e some do filme sem qualquer função reconhecível, por exemplo),
guiando-se tão somente pela necessidade de atingir toda e qualquer imagem
cool hiper-trabalhada (notem, por exemplo, o bizarro uso de velas iluminando
um armazém que serve de covil de vilões!). Junto com Procurado,
o filme faz temer um futuro onde o cinema de ação se ajoelha frente
aos regimes audiovisuais alheios a ele, num tipo de produto que parece realmente
abrir mão de qualquer sinal de manufatura humana por uma adoração
vazia do efeito sem magia e, em última instância (como o design
dos créditos finais aqui deixa bem claro), uma grande ode às armas
de fogo. Só que, enquanto no videogame original o jogador partilha da missão
básica de matar a tiros um enorme número de personagens, no cinema
o espectador é absolutamente passivo ao acompanhar a sua trajetória
- e por isso mesmo encontra tempo para pensar e sentir a total falta de empatia
de qualquer tipo desta experiência audiovisual.
Melhor
Amigo da Noiva (Made of Honor), O; de Paul Weiland (EUA, 2008) por
Francis Vogner dos Reis Patrick
Dempsey se apaixona pela melhor amiga que vai se casar com um cara mais sensível,
mais rico e mais bem dotado que ele. Essa é uma premissa, parecida com muitas
outras, o que não seria um problema se não fosse a extrema falta de personalidade
em ação. Mas é interessante ver uma comédia como esta que tem seu esforço centrado
na forçação de barra de qualquer detalhe pitoresco e grotesco. Chega a ser comovente
o incansável esforço por criar uma imagem que seja cômica, uma gag. Em
alguns momentos a coisa soa tão “over” que até consegue ser engraçado. O Melhor
Amigo da Noiva acaba sendo um filme que leva à seguinte reflexão (simples,
mas cada vez mais necessária): o que faz de uma comédia um projeto cinematográfico
além da tentativa de arrancar risadas? Essa pergunta emerge porque o filme de
Weiland é um Frankestein de comédias de casamento, uma reunião de idéias de filmes
mais talentosos como O Casamento do Meu Melhor Amigo e Quatro Casamentos
e um Funeral, que soa tão mais antiquada em um tempo em que os irmãos Farrelly
se dedicam a fazer filmes sobre relacionamentos. O Melhor Amigo da Noiva
serve para, pelo menos, mostrar que Sex and the City - O filme tem sim
(apesar de tudo) um projeto estético e dramático. Algo cada vez mais raro.
MeninaMá.com
(Hard Candy), de David Slade (EUA, 2006) por
Eduardo Valente O longa de estréia de Slade
deixa claro, logo nas suas primeiras imagens (que reproduzem na tela scope
um teclar de chatrooms de internet), que se interessa muito em estar inserido
na contemporaneidade. Ponto positivo para o filme, a princípio. No entanto,
logo descobrimos de qual contemporaneidade se trata aqui. Aquilo que começa
como um curioso exercício de "deslocalização" espacial
(a conversa no café, quase toda em closes que nos retiram do espaço
exterior aos personagens), e parece inveredar por uma área pantanosa, mas
não sem interesse (as relações pessoais versus as relações
pela web), logo descamba no mais profundo moralismo - disfarçado,
como muitas vezes é o caso, de "radicalismo". Pior que o conteúdo
moralista, porém, é a forma como o filme o externa: através
da desumanização típica de um determinado cinema recente,
que o crítico Ruy Gardnier chamou na Contracampo (acerca do Professora
de Piano, de Michael Haneke), da "estética do refém".
Neste cinema, o sadismo do realizador com relação a seus personagens
duplica e disfarça o sado-masoquismo que espera do espectador: fustigá-lo
com imagens da tortura dos personagens é, também, o desejo de torturá-lo,
acreditando que só nesta catarse se encontra alguma resposta deste espectador.
Nesse sentido, Meninamá.com (que tradução horrenda!)
é um exemplar caso da estética do refém em sua vertente mais
pop (Haneke está na vertente intelectualizada). Em comum, supostos
temas "sérios" (que, num filme moralista como este, claro que
vem encarnado como cautionary tales, ou seja, contos exemplares para causar
o medo e o alerta no espectador). Entre a auto-consciência de sua "malandragem
de linguagem" e o abuso mental de quem assiste, é preciso muito estômago
para aguentar este filminho fascista até o final.
Meu
Irmão é Filho Único (Mio Fratelo è Figlio Unico),
de Daniele Luchetti (Itália, 2007) por
Eduardo Valente Estaria
Meu Irmão é Filho Único nos dizendo que fascismo e comunismo são (melhor
seria dizer eram, já que o filme se localiza nos anos 60) pouco mais do que bandeiras
intercambiáveis, ideologias assim formatadas e aceitas tão somente por jovens
desapegados precisando de algum grupo a que pertencer? Como dizíamos outro dia
sobre Tropa de Elite, de novo é questão
de não se confundir narração do filme com narração do personagem: pois, tal e
qual o filme de José Padilha, este filme de Daniele Luchetti é narrado desde a
primeira cena em primeiríssima pessoa por um personagem que, logo entendemos,
incorpora e vive o fascismo e o comunismo exatamente como acima descrevemos. No
entanto, Luchetti não faz essa a sua visão, uma vez que, para um dos personagens
que leva a sério a luta comunista, as conseqüências se mostrarão bem mais sérias
do que ganhar ou perder essa ou aquela menina – apenas, neste filme, este personagem
é um coadjuvante. Trata-se, portanto, da opção narrativa de se irmanar a um personagem
que é, por natureza, um anti-herói, e que vive na contramão do seu tempo. Luchetti
faz isso com especial felicidade enquanto trata das pequenas situações da vida
deste personagem (o caso com a mulher do seu mentor, a paixão pela namorada do
irmão, as brigas com este mesmo irmão e a mãe), e com bem menos sucesso quando
amplia o escopo e adquire um certo tom épico da “vida na Itália”. Acima de tudo,
faz um filme que anda muito rápido (a notar o prólogo entre os seminaristas),
mas que consegue fazê-lo com considerável graciosidade.
Missão
Babilônia (Babylon A.D.), de Mathieu Kassovitz (EUA, 2008) por
Eduardo Valente Circulou
pela internet, pouco antes da estréia mundial de Missão Babilônia,
uma entrevista do diretor Mathieu Kassovitz declarando não se reconhecer
no produto final do filme, realizado em clima extremamente tenso entre ele e o
estúdio americano Fox. Certamente Kassovitz torna assim a missão
de se elogiar algo em seu filme bem mais complicada, mas é preciso dizer
que, ainda que bastante afundado no lugar-comum no desenvolvimento da sua trama
e certamente sofrendo com uma edição que torna vários personagens
e situações bem difíceis de entender, o filme tem na sua
primeira parte uma energia e uma exploração de universo audiovisual
bastante interessantes. Com Vin Diesel interpretando o Vin Diesel de sempre (e
sempre muito bem neste papel), o filme tem uma sujeira e um sentimento de "terra"
no retrato que traça de (mais um, é verdade) um futuro apocaliptíco
de tintas curiosamente realistas que o faz bastante engajante neste momento -
algo que o torna bem distinto, por exemplo, de um O Procurado, com seus
seres feitos de computação gráfica e situações
sem qualquer peso. Na medida em que o personagem de Diesel vai se "humanizando",
o filme vai perdendo boa parte deste seu charme duro, e com ele se esvai sua força.
Motoqueiro
Fantasma (Ghost Rider), de Mark Steven Johnson (EUA, 2007) por
Felipe Bragança Com esta terceira adaptação
de quadrinhos para o cinema (fez antes Demolidor e Electra), Mark
Steven Johnson comprova de uma vez por todas seu total desinteresse por fazer
na seara cinematográfica algo mais do que um conjunto de filmes caça-níqueis,
sem qualquer marca de estilo ou sentido estético. O filme, que poderia se chamar
ghost writer em inglês, conta com um dos piores roteiros já escritos na
história do cinema, com tantos clichês amontoados e tanta preguiça de encenação
que a única possibilidade de salvação seria mesmo acreditar
de que se trataria de uma paródia do gênero (uma espécie de episódio do circense
Scoobie-doo). Como protagonista, o careteiro Nicholas Cage parece estar
pisando em ovos a cada fala, tentando emular uma máscara pós-moderna de cowboy
jocoso que no máximo consegue desestabilizar ainda mais a dramaturgia titubeante
do filme. Com efeitos especiais preguiçosos e sem identidade, Motoqueiro Fantasma
não dialoga com os quadrinhos originais, nem muito menos, por outro viés, propõe
um caminho diferente para a personagem, uma possível releitura. Tim Burton, aqui,
talvez conseguisse encontrar/alcançar o sarcasmo que Johnson acabou por transformar,
infelizmente, em um filme meramente patético.
Motoqueiros
Selvagens (Wild Hogs), de Walt Becker (EUA, 2007) por
Eduardo Valente As primeiras cenas do filme assustam:
depois de uma seqüência inicial que mais parece saída de um trailer, sem qualquer
conexão narrativa para além da piada (óbvia), segue-se uma introdução dos quatro
protagonistas com um tamanho acúmulo de clichês (com direito a cartela de crédito
para o nome de cada um), e, de novo, piadas ruins, que fica um certo constrangimento
para o espectador – e a sensação do tempo jogado fora. E,
de fato, ao longo da primeira meia hora, é bem difícil achar alguma graça em Motoqueiros
Selvagens, já que o filme parece completamente perdido narrativamente, não
conseguindo ir além de seu “conceito”: quatro homens de meia-idade tentando resolver
suas crises em cima de motocicletas (sendo que o principal para o filme é que
os quatro sejam John Travolta, Martin Lawrence, William H. Macy e Tim Allen).
No entanto, quando toda esperança já parece perdida, o filme encontra uma salvação
ao chegar em dois ambientes (e grupos de personagens) que servem como uma lufada
de ar fresco: primeiro, o bar dos motoqueiros (onde Ray Liotta surge interpretando
com particular gana – cômica e séria – seu personagem); e depois a cidadezinha
de Madrid (onde é a vez de Marisa Tomei e Stephen Tobolowski darem vida ao filme).
O que acontece nestes espaços é que a graça do filme pára de depender dos (fracos)
personagens principais, e ganha uma independência muito mais aproximada da comédia
amalucada. Cenas como a do touro selvagem, presenças como a do cantor de quermesse
e a libertação de William H. Macy da narrativa do filme (via Tomei), tornando-se
um personagem à parte, tornam o filme repentinamente bastante agradável – e, surpresa
maior, engraçado. Some-se a isso uma autêntica vontade de levar a trama dos motoqueiros
até o fim (algo que poderia ser abandonado por pura preguiça), sem uma saída redentora
fácil e ridícula (optando-se por um deus ex-machina realmente engraçado
na figura de Peter Fonda), e o filme quase muda da água para o vinho. Prova disso
é a seqüência dos créditos finais, esta sim (ao contrário da inicial) realmente
engraçada – e não por acaso sem a presença dos quatro protagonistas. Motoqueiros
Selvagens é um filme que, para se encontrar, precisa praticamente abandonar
seus protagonistas, que pareciam sua razão de ser (ruim). Ainda bem que consegue
fazê-lo. Na
Cama (En La Cama), de Matias Bíze (Chile, 2006) por
Eduardo Valente Num determinado momento de Na Cama, o
homem (não importa muito no filme o nome que eles tenham, eles nunca deixam de
ser “o homem” e “a mulher”) pergunta para a mulher: “você não pagaria para ver
o que realmente acontece num quarto de motel?”; ao que ela prontamente responde:
“não!”. Difícil discordar da moça após ter visto o filme de Matias Bize, que propõe
exatamente esta experiência de “naturalismo radical”, acreditando “desvelar” assim
alguma coisa sobre as relações entre homem-mulher nos tempos atuais, dentro de
uma estrutura quase em tempo real formada pelas conversas entre este casal em
meio à sua primeira (e última?) noite de amor. Claro que um primeiro desafio que
se impunha a Bize era como filmar um casal que nunca sai de um mesmo quarto ao
longo da hora e meia de filme – e a este ele parece ter respondido: “de qualquer
jeito”. Sim,
porque mais do que uma questão “conceitual” (a inquietude e as incertezas de uma
relação entre recém-conhecidos), a câmera (dv, claro) na mão hiper-nervosa e os
cortes incessantes parecem ser uma solução cênica (pela não-solução, diga-se)
desse dilema do espaço único. Há bem pouco tempo vimos um realizador brasileiro
(Gustavo Acioli) enfrentar o mesmo dilema em um filme de estréia, e sair-se bem
melhor diante dele, procurando estabelecer uma relação minimamente interessante
(ainda que por vezes auto-centrada demais) com o espaço, a câmera e os personagens.
Bize chuta o balde: ele quer apenas naturalismo dos atores e não pensar sobre
colocação da câmera, colocando-a em todos os lugares. Anula sua relação com o
espaço e o tempo, e joga tudo para o roteiro escrito, para o que se diz, buscando
se afirmar pela universalidade, pelo banal. Só que o jogo que propõe é igualmente
falso: finge querer acesso a este banal “de todos nós”, mas tudo que os personagens
menos narram é a banalidade – ela vai se casar, ele mudar de país, a camisinha
fura, etc. Ou seja: temos o bom e velho romanesco disfarçado de “câmera escondida
sobre a nossa vida” – só que sem um centésimo da graça de um Richard Linklater
ou um bilionésimo da complexidade de um Rohmer. Ao fim e ao cabo, Na Cama
é uma experiência esteticamente nula que se vende através de uma ousadia e uma
novidade que não são nem um nem outro. Isso é que é gato por lebre.
Na
Mira do Chefe (In Bruges), de Martin McDonagh (Inglaterra/Bélgica, 2008)
por Paulo Santos Lima Após
um conturbado trabalho, dois assassinos profissionais britânicos são enviados
para a histórica cidade medieval de Bruges, a fim de aguardar novas ordens do
patrão. Ainda que elegantemente filmada por câmera classicamente sutil, em scope
alimentando uma exuberância naquela arquitetura, Bruges não será uma questão ao
longo do filme, exceto como ponte cômica para o personagem de Ray (Colin Farrell),
que detesta história (“tudo já aconteceu”, diz) e acha aquele lugar um tremendo
tédio. Esse humor, bastante herdeiro da tradição britânica anti-correção política,
dá respiros formidáveis a este filme que, além da câmera cuidadosa, mantém um
certo tom solene, sobretudo quando envereda pelo drama de Ray, que matou por engano
uma criança na igreja. O resultado é um jogo interessante, de onde uma cena dramática
é implodida por uma frase pescada do ótimo texto ou pelas atuações de Farrell,
de Brendan Gleeson (que faz Ken, o parceiro) e de Ralph Fiennes (cuja aparição,
a horas tantas, é a síntese desse jogo interessante de usar o inusitado para “sabotar”
os momentos dramáticos). Assim, o choro é quebrado por uma noitada a pó, mulheres
e álcool, ou uma terrível morte acaba resgatando (e confirmando) uma piada “politicamente
incorreta”, de anão, feita anteriormente por Ray. É um cinema de ator, mas com
elenco que se presta bem ao serviço da zombaria.
Na
Natureza Selvagem (Into the Wild), de Sean Penn (EUA, 2007)
por Paulo Santos Lima Sean
Penn, talvez seguro de sua habilidade na direção, construção de ambientes, bom
olho para enquadramentos e fluxo de imagens, repousou sua atenção à massa textual
do impactante livro de Jon Krakauer quando levou para a tela o seu Into the
Wild. Chris McCandless é um jovem classe média alta americano que, rebelde
à “hipocrisia da civilização”, larga tudo e parte com identidade rasgada para
a itinerância no mundo selvagem, uma espécie de “caminho de Santiago de Compostela”
de sua casa ao Alasca, no qual conhecerá alguns outsiders muito lúcidos,
com frases sábias. O filme alterna o presente (quando Chris reside num ônibus
abandonado no meio do Alasca) e os flashbacks que nos instruem por que
o rapaz tomou esse caminho na vida. Temos, aí, um filme a ser lido, com as narrações
em off de Chris e de sua irmã – ela dizendo por que ele foi para a estrada,
e ele falando sobre o que é essa sua filosofia de vida. De uma forma reiterativa,
boçal até, a fita mostra os pais do cara (William Hurt, bem, e Marcia Gay Harden
naquela sua caricatura de mulher perturbada) como sintomas de uma cultura que
desumanizou o ser humano, que agora está voltado ao dinheiro e ao vazio. Sim,
é um filme sobre a crise familiar e solidão, o que aliás o alinha aos outros filmes
de Penn, como Ajuste Final e A Promessa, ambos muito mais bem dirigidos
ao criar camadas de leitura sobre o rosto dos personagens e suas tragédias. Aqui,
o que fica é uma histeria de belos planos em scope remetendo aos documentários
de mundo selvagem e a referência de pelo menos dois filmes que servem de régua
para este: Os Lobos Não Choram (sobre a relação homem e natureza, e com
pouquíssimos diálogos ou verborragia didática, o oposto deste aqui) e A História
Real (road movie de conciliação e descoberta, distinto deste filme
de fuga cuja descoberta final é, no mínimo, atroz).
Ninho
Vazio (El Nido Vacio), de Daniel Burman (Argentina/Espanha/França/Itália,
2008) por Eduardo Valente Encontramos
Leonardo num daqueles momentos delicados da vida: dramaturgo de sucesso, casado
com a bela Martha, está chegando na idade em que sua filha mais velha se
prepara para sair de casa. A partir da noite em que se dá conta disso (após
um jantar em que se dá conta também de uma série de inadequações
entre ele e a mulher - e principalmente os amigos desta), ele entra em uma espécie
de parafuso mental (criativo, claro, afinal é um artista) que vai transformando
sua vida num constante estado de desencanto e/ou desespero. Daniel Burman filma
isso tudo com sua habitual mistura de elegância, diálogos inteligentes,
grandes atores, câmera na mão (quase sempre excessivamente), tudo
no lugar - um pouco no lugar demais, inclusive, e as cenas parecem tão
somente servir para ilustrar os problemas de Leonardo de maneiras um tanto óbvias
(ver, principalmente, as que se passam na terapia de casal, ou no caso extraconjugal
que vive com sua dentista). Na verdade, mais do que isso, o problema principal
de Ninho Vazio é que Leonardo é um personagem desagradável
ao extremo no seu egocentrismo infantilizado (e há outro tipo?), e ao fazer
um filme todo sob seu ponto de vista (em mais de um sentido, como confirmamos
no final), Burman impõe-se um desafio nada pequeno: como causar a empatia
do espectador pelo ponto de vista de um homem desagradável? Longe de propormos
que o cinema só trate de personagens simpáticos, mas o fato é
que o tamanho do desafio não é resolvido em mais este exemplar do
cinema humanista-formulaico de Burman, que se sempre foi de altos e baixos, aqui
vê os segundos acabarem sobressaindo-se aos primeiros (ainda que estes existam).
Noite
no Museu, Uma (A Night at the Museum), de Shawn Levy (EUA, 2006) por
Felipe Bragança Uma Noite no Museu
é um filme, mas podia ser também um parque-temático em Orlando. Toda a construção
narrativa (ou do fluxo de imagens) serve apenas para cumprir um díptico drama
familiar x atrações físicas de tal forma que qualquer articulação entre as
partes é um mero entreposto. Por isso, se algumas das brincadeiras (e o filme
todo é uma grande brincadeira, uma gag de 90 minutos) carregam graça suficiente
dentro de seu tempo próprio, a
costura dessas partes, dessas atrações, não consegue fazer do filme mais do que
uma coleção de esquetes cômicos que de longe (bem longe) lembra boas comédias
ligeiras de tempos atrás. É impossível, para nossas referências, não lembrar dos
primeiros filmes dos Trapalhões ou das narrativas em plots circulares de
nossa tradição de paródias musicais intercalando números de canto. Ben Stiller
se diverte em alguns momentos, e até consegue fazer rir, mas qualquer intenção
de equilibrar a camada mais infantil-didática do roteiro com inteligência cômica,
vai por água abaixo. O filme todo trepida como um trem fantasma mal-dirigido e
mal montado (sem contar que Robin Williams de presidente norte-americano “honrado
e apaixonado” é um pouco demais... ou não?).
Noites
de Tormenta (Nights in Rodanthe), de George C. Wolfe (EUA, 2008) por
Eduardo Valente O
caminho mais fácil para descartar de saída Noites de Tormenta seria acusar
aquilo que, no fundo, ele não nega ser: um enorme emaranhado de clichês de filmes
românticos com fins “curativos”, embrulhados por uma fotografia e direção de arte
hiper-trabalhadas, com um par de atores (Richard Gere e Diane Lane) claramente
em piloto automático, revisitando suas personas mais que estabelecidas, sem se
preocupar em adicionar nada de novo. No entanto, existe algo de mais profundamente
perturbador no filme do que sua aparência mais imediata deixa antever (ou do que
a quase cópia de As Pontes de Madison que ele é). Muito mais do que sua
opção pelo clichê, o que realmente incomoda é o fato de que toda a lógica de Noites
de Tormenta vem da afirmação de que um momento único vivido e dividido entre
duas pessoas pode movê-las internamente mais até do que suas vidas anteriores
todas – no entanto, o que George C. Wolfe parece não se dar conta é de que como
espectadores nós precisamos, cinematograficamente, acreditar na força deste momento.
Ao encená-lo de maneira ao mesmo tempo tão óbvia e artificializada, Wolfe não
cria um momento humano único e sim um momento cinematográfico já mais do que digerido
e tornado lugar comum. E como podemos nós acreditar, então, que um tamanho lugar
comum pode mudar a vida das pessoas? A resposta é: não podemos. Nome
de Família (The namesake), de Mira Nair (Índia/EUA 2006) por
Renata Gomes Dois
temas complementares são recorrentes na literatura da anglo-americana de ascendência
indiana Jhumpa Lahiri, cujo livro O Xará serve de base para o filme Nome
de Família: o choque cultural e o choque de gerações. O grande êxito de Lahiri,
e questão central do filme da indiana Mira Nair, é a forma como se misturam essas
duas questões. O choque cultural se dá, num primeiro momento, a partir da perspectiva
de Ashima, a mulher bengali que se muda de Calcutá para os EUA ao lado de seu
marido Ashoke. A partir destas mudanças (casamento e emigração), emergem, ao mesmo
tempo, o estranhamento diante do casamento arranjado e do novo país, em tudo diferente
da terra natal. Logo, contudo, o foco narrativo do filme começa a mudar para a
perspectiva de Gogol, o filho mais velho do casal – e, com isto, emerge o choque
das gerações. No caso de Gogol, começa pela incompreensão da escolha de seu nome,
homenagem ao autor russo (o xará do título original, que a versão brasileira do
filme deixou de lado), o qual, mais adiante, escolherá mudar para seu "nome
verdadeiro”, Nikhil. A resistência à adoção da cultura dos pais de Gogol é compartilhada
pela irmã, igualmente à vontade no país de nascimento. A tensão emergente das
relações entre cultura a ser mantida e adoção de uma nova cultura e a forma como
essa tensão corresponde aos anseios de cada geração compõem a riqueza do filme.
Contudo, na tentativa de cobrir os mais de trinta anos da história, no filme,
tudo acaba ficando um pouco episódico. Para fazer caber cada evento importante,
pulam-se partes gigantescas das vidas dos personagens, de modo que cada cena passa
a ser uma espécie de emblema incontestável das razões de cada um. A identificação
com os personagens, pedra fundamental numa história sobre estranhamento cultural
e geracional, por vezes sai empobrecida, por melhor que seja o desempenho do elenco
e a riqueza do(s) mundo(s) em que vivem. Talvez por isso as importantes mudanças
de perspectiva tanto de pais, quanto de filhos, percam um pouco da força que poderiam
ter, sobretudo no que diz respeito ao personagem Gogol/Nikhil “Nick”. Na literatura
de Lahiri (vencedora de um Pullitzer com o livro de contos Intérprete de Males,
de onde surgem os mesmos temas), tudo parece menos taxativo – mas, enfim, é sempre
uma briga injusta essa entre livros e suas adaptações...
Notas
sobre um Escândalo (Notes on a Scandal), de Richard Eyre (Inglaterra,
2006) por Renata Gomes Ainda
sob os ventos do Oscar, fica fácil perceber o quanto Notas sobre um escândalo
é uma espécie de força-tarefa para reunir o melhor de um certo cinema “domesticado”.
Com quatro indicações (não premiadas) ao prêmio (roteiro adaptado, atriz principal
e coadjuvante e trilha sonora), o filme pode ser visto como arremate de um processo
que tenta reunir em sua feitura os mais refinados parâmetros de uma indústria.
Como sinal de êxito, se prestará a debates sobre seu tema delicado, adulto, ambíguo,
sobre a moral ou absoluta amoralidade de suas personagens, sobre a habilidade
louvável de suas atrizes, sobre a sofisticação de sua trilha sonora (para ficarmos
apenas nas indicações). A habilidade das atrizes, sobretudo da dama Dench
(título equivalente ao de sir de Charlie Chaplin e Alfred Hitchcok), é
provavelmente o maior trunfo do filme, que claramente precisa de um elenco “de
peso” para caminhar. A narração de Dench costura a narrativa, mas o “tempo de
câmera” dedicado à professora e seu caso adolescente fazem
a trama caminhar numa perigosa e tênue linha entre o drama em torno da chantagem,
da obsessão e da homossexualidade velada (mas pouco ou nada erotizada) de Dench
e um suspense bem menos sofisticado, que gira em torno apenas da descoberta do
ato ilícito. E é aí que o cânone começa a pesar: num filme tão claramente organizado
em torno do melhor do cinema “domesticado”, algo não cai bem. Talvez seja a trilha
sonora que, conquanto bela e assinada por Phillip Glass, pesa ao sublinhar momentos
que poderiam e deveriam ser mais ambíguos. Talvez seja o roteiro que, mesmo se
esquivando de armadilhas, ora tipifica um tantinho demais suas personagens, ora
as ilumina de maneira repentina, quase gratuita (como ao personagem de Bill Nighy,
ou ao professor apaixonadinho por Blanchett), como que apenas para preencher um
nó sem o qual a narrativa não andaria nessa toada provável que marca o filme canônico
– ou ainda quem sabe para justificar a pecha de “filme de ator”. Revolvendo temas
delicados, seu maior mérito é escapar à tentação de achatar nuanças em julgamentos
morais sobre o ato facilmente condenável da personagem de Cate Blanchett, a professora
novata que tem um caso com um aluno de 15 anos. Filtrado pelo o foco da protagonista
interpretada por Judi Dench, o ato imoral perde o peso que teria em si e passa
a valer apenas (talvez até demais) como objeto da chantagem desta para seus próprios
interesses obsessivos. O foco do filme é a busca amoral de Dench pela “amizade
exclusiva” de Blanchett e só depois o caso adolescente desta – tanto que este
vem à tona a partir do olhar enciumado de Dench e só depois pelo foco da personagem
que o pratica.
No Vale das Sombras
(In The Valley of Ellah), de Paul Haggis (EUA, 2007) por
Francis Vogner dos Reis Boa
notícia: independente do resultado dramático e estético de No Vale das Sombras,
Tommy Lee Jones consegue fazer com que o novo filme de Paul Haggis tenha momentos
que só o cinema (e nenhuma outra arte) atingem. O ator desfruta aqui do poder
que Henry Fonda tinha em alguns de seus papéis, em que boa parte da força vinha
do não-dito, das emoções implodidas do homem aparentemente durão e impassível.
Um gênio, pra dizer o mínimo. De resto, No Vale das Sombras é melhor do
que Crash, mas isso não quer dizer muita coisa. Toda essa mania de estabelecer
vínculos entre os problemas sociais e políticos contemporâneos, acabam transformando
o talentoso roteirista Paul Haggis em um cineasta que chafurda na culpa como maneira
de exorcizar os traumas coletivos vividos em uma terra devastada onde as instituições
democráticas falharam retumbantemente. Na história, um militar aposentado vai
atrás do filho que voltou do Iraque e desapareceu. Encontra os restos mortais
do rapaz em um descampado próximo à base militar. O pai, Hank Deerfield, por meio
do celular do filho, descobre imagens que ele capturou em vídeo no Iraque. A trama,
de modo geral, é engendrada de maneira semelhante a Crash – a novidade
é no entanto, esse elemento, o vídeo. Haggis pisa em ovos ao tentar lidar com
fragmentos de imagens contraditórias, que registraram momentos cruéis da guerra.
Essas imagens preencherão os vácuos de dúvida que os personagens têm durante o
filme. O vídeo acaba sendo um simples elemento dramático. Interessante é fazer
o contraponto de No Vale das Sombras com Redacted, de Brian DePalma
– este sim um trabalho que estabelece uma crise sem precedentes na imagem como
drama e representação.
Olhe
para os Dois Lados (Look Both Ways), de Sarah Watt (Austrália,
2005) por Eduardo Valente Olhe
para os Dois Lados está longe de ser especialmente diferenciado. No entanto,
na sua reciclagem de uma série de situações e ferramentas já mais do que batidas
(especialmente no cinema americano independente), há algo de simpático,
em especial na entrega de sua diretora a seus personagens-atores, que lembra bastante
o recente Eu, Você e Todos Nós (filme que tem detratores violentos, mas
do qual eu gosto imensamente). Uma mesma melancolia desavergonhada e pop,
ainda que aqui menos bem dosada (há pelo menos uns dois “clipes” musicais a mais
do que o suportável). No seu cruzamento de narrativas a partir de um acidente,
também seria fácil rever o cinema de Arriaga-Iñarritu, mas há que se notar tanto
o cuidado dramatúrgico de colocar o acaso como tema e não como imposição do autor,
assim como a ausência de um fatalismo sádico na relação dos seres humanos.
Olho
de Boi, de Hermano Penna (Brasil, 2007) por
Eduardo Valente O cinema é uma arte misteriosa.
Tomemos como exemplo este Olho de Boi: Hermano Penna (diretor, entre outros,
do fortíssimo Sargento Getúlio) propõe não apenas um radical mergulho no
formato do filme B.O. (baixo orçamento) como não se curva nem a um registro naturalista
mais banal, nem a uma narrativa que se paute pelo que podemos considerar uma dramaturgia
mais realista. De fato, seu Olho de Boi é uma indisfarçada tentativa de
levar a tragédia grega para o interior de São Paulo, de fazer de seus dois personagens
principais arquétipos de toda uma tradição que remonta, principalmente, ao formato
teatral. Apenas dois personagens em cena quase o tempo todo (há mais dois em breves,
mas importantes, participações), praticamente apenas duas locações: faz sentido
falarmos em teatro sim, mas
Penna e seu fotógrafo (Uli Burtin) se esforçam para dar ao filme um olhar unicamente
cinematográfico, seja pelo jogo com a luz, seja principalmente pelo constante
(até demais) uso de enquadramentos e raccords estranhos, que nos lembram
da presença de uma câmera, de um olhar sobre a cena. Por todo o acima descrito,
Olho de Boi é um filme que nos interessa muito, pois ambiciona bastante.
Mas, aí entra em cena o tal mistério mencionado no começo: porque por mais que
cineasta e fotógrafo se preocupem em achar uma decupagem viva e incomum, por mais
que os atores se esforcem em dar a seus personagens uma verdade toda deles (algo
difícil não só pelo aspecto trágico quanto pelo uso do sotaque interiorano radical),
por mais que a trilha sonora construa seus climas (de novo, talvez um pouco demais),
por mais que a direção de arte se esmere em dar força e presença ao espaço da
igreja onde o filme se instaura no começo, ainda assim há algo na tela que não
se completa entre projeto e resultado final. Ao flertar com a tragédia, Olho de
Boi ousa uma aposta arriscada, em que o pouco é insuficiente, mas o muito também
pode ser excessivo. Achar este tom preciso é, então, o principal – e algo que
o filme não consegue de fato atingir. Há assim, talvez acima de tudo, a constatação
de que quanto maior a ambição artística do projeto, mais inclemente é a sutileza
deste ente inefável que se chama arte cinematográfica. Operação
Valquíria (Valkyrie), de Bryan Singer (EUA, 2008) por
Eduardo Valente Existe
um problema no coração mesmo do projeto de Operação Valquíria, que é explicitado
de alguma forma pela simples escolha de colocar as primeiras palavras do personagem
de Tom Cruise sendo ditas em alemão, e depois trocadas para o inglês do ator.
Neste movimento, a produção mostra uma preocupação de “correção”, como quem diz
“olha, sabemos que não se falava inglês na Alemanha da Segunda Guerra, mas entendam
que precisamos fazer isso neste filme”. É bem o tipo de preocupação que a velha
Hollywood nunca teve, nem sentiu necessidade de ter, e é deste conflito de uma
antiga ordem com uma nova que o filme sofre. Sim, porque o filme de Bryan Singer
vive o tempo todo cindido entre um desejo e uma necessidade: o desejo aparente
é de uma relação com um cinema anterior, de espionagem pura e simples, cinema
tradicionalmente de atores e de texto; a necessidade, na Hollywood de hoje, para
se viabilizar um filme com uma produção tão grande e cara, é o de simular um filme
de ação que não passa nem perto de ser a vocação do material (no que certamente
não ajuda o fato de que o final da história é mais do que óbvio). Entre o desejo
e a necessidade, o filme de Singer acaba optando pelo meio do caminho, e isso
faz com que todas as tentativas soem um tanto interrompidas, num filme que sofre
acima de tudo desta sensação de não haver um real fluxo que se forme. E assim
o filme resulta tão “correto” quanto a transição de línguas inicial: sem energia
nem foco, nem excita os sentidos nem marca pelo jogo de texto e elenco. Todos,
sempre, corretos. E só.
O Orfanato (El Orfanato),
de Juan Antonio Bayona (Espanha, 2007)
por Ronaldo Passarinho
A
cinematografia espanhola não é tão rica quanto a italiana em filmes
de horror. Quando se fala em mestres do horror europeu é provável
que os primeiros nomes que surjam sejam os de cineastas como Mario
Bava, Dario Argento e Lucio Fulci. Mas o cinema de horror espanhol
também tem tradição. Os nomes mais conhecidos são o do ator e
diretor Paul Naschy e o do prolífico, e genial, Jesus Franco (aliás,
o termo prolífico não dá conta da quantidade de filmes que ele
dirigiu). Hoje a situação se inverteu. Argento ainda dirige (e
bem), mas o cinema de horror italiano perdeu a força. O cinema
de horror espanhol, por outro lado, ganhou ímpeto com o surgimento,
a partir da década de 90, de cineastas como Álex de la Iglesia,
Alejandro Almenabar e Guillermo del Toro, entre dezenas de outros.
Mas abundância não é sinônimo de excelência. Del Toro é o produtor
de El Orfanato e seu “padrão de qualidade” está impresso
em cada fotograma do filme dirigido pelo estreante em longa-metragem
de ficção Juan Antonio Bayona, que veio da TV. Tudo no filme é
requintado. E requentado. Direção de arte, figurino, fotografia,
edição de som... tudo de primeira. Mas o enredo é um samba do
crioulo doido, misturando O Sexto Sentido, Poltergeist
e um filme de fantasma qualquer da Disney. Pensando bem, nem é
tão doido assim o samba, já que Spielberg vem de Disney e Shyamalan
vem de Spielberg. Mas é requentado do mesmo jeito. E sem o talento
de Shyamalan na direção, não vale a pena.
A Outra (The Other Boleyn
Girl),
de Justin Chadwick (Inglaterra/EUA, 2008)
por Francis Vogner dos Reis
É
um trabalho de Hércules assistir a um filme que encena um fato
histórico sob forma de historieta de detalhes infames. Se o objetivo
não era fazer um filme histórico ao pé da letra (nunca obrigação
de nenhum filme), existia a possibilidade de propor qualquer recorte
no “caso” das irmãs Maria e Ana Bolena com o rei da Inglaterra
Henrique VIII, seja ele político ou de pura e simples sacanagem
de alcova. Mas não. O protocolo a cumprir é o do filme médio,
para o público de médio interesse por esse episódio histórico
e pouco interesse no cinema. Tudo em A Outra é “médio”,
está no meio termo: figurinos, cenografia, tom de interpretação
e condução da narrativa. Na média, para que não seja considerado
além e nem aquém. O tom morno e nulo é algo parente, porque o
filme tem um gosto pelo sensacionalismo, a uma espécie de aula
de história lecionada pelo E! Entertaiment Television, chafurdando
dos detalhes escandalosos da corte. Tudo isso com algum comedimento,
claro, porque o filme de Chadwick não é oito nem oitenta, mas
um drama vazio, sem água e nem açúcar.
Passageiros (Passengers),
de Rodrigo Garcia (EUA, 2008)
por Eduardo Valente
Se
existe uma grande utilidade na existência deste Passageiros
é a de demonstrar como o cinema de gêneros é, junto com a comédia,
um dos que mais impõe desafios a um diretor para conseguir sequer
ser medíocre. Num como na outra, estamos falando de conceitos
muitas vezes intangíveis como dados (timing, clima, química),
mas que quando ausentes na tela não deixam qualquer dúvida: quase
pode-se ouvir o som do filme explodindo. É o que acontece neste
filme de Rodrigo Garcia, que até hoje só havia se aventurado no
cinema “dramático-humano”, aquele que, no fundo, menos pede do
cineasta como artesão, pois vive a se esconder atrás de “histórias
poderosas”, “personagens cativantes”, “atuações emocionantes”
e que tais. Recebendo aqui um roteiro que pede outras qualidades,
como conseguir criar clima com o domínio da mise-en-scène
ou desviar o foco do espectador da trama quase inexistente para
a interação entre os corpos, e entre estes e o espaço, Garcia
fica completamente exposto, revelando latente incapacidade para
qualquer uma das missões. O resultado é um filme que deveria disfarçar
seu formato de “surpresa final que a tudo reposiciona” ao nos
engajar no romance entre seus protagonistas, ou na suposta trama
de suspense-horror, mas que nunca causa nenhuma das duas emoções:
o romance nos parece sempre irreal (e não no sentido que o filme
gostaria), assim como o suspense inexiste. Que a “virada final”
só consiga fazer do filme um triste exemplo de sub-literatura
de auto-ajuda mística acaba sendo bastante adequado. De fato,
Passageiros possui um outro interesse, inegável: talvez
todos que não conseguem entender de onde vem a força dos filmes
de M. Night Shyamalan devessem assistir a este aqui para ver o
que restaria de seu cinema sem a força de seu olhar e domínio
sobre a linguagem do cinema – ou seja, nada.
Perfume – A História de um
Assassino (Perfume - The Story of a Murderer),
de Tom Tykwer (Alemanha/França/Espanha, 2006)
por Francis Vogner dos Reis
Por debaixo de seus floreios e aparente astúcia
em como se contar uma história, os filmes do alemão Tom Tykwer
são trabalhos de engrenagem tão automática, fria e sem substância,
que o transformam em um dos maiores representantes do novo academicismo.
Perfume não foge à regra, apesar de ser o trabalho mais
desleixado da obra de seu diretor. Baseado no livro de Patrick
Süskind, o filme conta a história de Jean-Baptiste Grenouille
(Ben Whisaw), homem que teria o olfato mais apurado do mundo.
Sua vida é cheirar. Colecionar aromas e odores. Diferente dos
olfatos leigos e limitados, seu faro não emite juízo se um odor
podre (de um rato em decomposição, por exemplo) é ruim ou se um
aroma agradável (flores e relva) é naturalmente bom. Ele cheira.
Mas como um esteta, sabe distinguir se um perfume – uma invenção
humana, portanto – é uma composição criativa ou se o cheiro tem
características excessivas e somas simplistas que buscam a “impressão”
de originalidade. Nascido na sujeira em um mercado de peixes e
criado em um reformatório, é descoberto por um perfumista decadente
(Dustin Hoffman). Jean-Baptiste fará combinações e perfumes de
sucesso, mas sua obsessão é outra: aprender a eternizar o “cheiro”,
que segundo sua crença, é a essência de todas as coisas. Como
o mundo e o prazer lhe são traduzidos pelo olfato, seu desejo
sexual também será estimulado pelo cheiro de jovens mulheres.
Como o aroma dos perfumes é obtido a partir da fermentação de
pétalas de rosas, ele buscará fazer o mesmo como corpo delas.
Segundo sua tara, capturando sua “essência”, ele as eternizaria,
assim como suas belezas. Em uma dramaturgia em que corpo e fluídos
são peça chave, Tykwer transforma tudo isso em decalque do desejo
que parece tão desprovido de qualquer inventividade estética que
faz sua representação se assemelhar a um teatro de bonecos. A
cena da suruba é a síntese do projeto: a representação do ato
sexual é substituída por uma sugestão do sexo e do desejo. Se
o desejo é a força-motriz do protagonista e do próprio conceito
de Perfume, raramente se viu no cinema (mesmo em filmes
ruins) tamanha frigidez. Mas, não chega a impressionar que Perfume
tenha um resultado tão inexpressivo, já que Tykwer se revelou
durante a carreira um especialista em esvaziar seus filmes de
qualquer possibilidade além da exacerbação de estilo.
Um Plano Brilhante (Flawless),
de Michael Radford (Inglaterra, 2007)
por
Eduardo Valente
Curiosamente,
há bem mais em comum entre este Um Plano Brilhante
e O Plano Perfeito, de Spike Lee, do que apenas a semelhança
dos seus títulos em português. Isso já se
deixa antever pela sequência de abertura deste filme aqui,
que ilustra os créditos com uma aparente "inocência"
semelhante a sequência dos créditos do filme de Lee,
mas ambas se revelam perversamente significativas. Se lá
as imagens dos símbolos e construções de
Wall Street ajudam a compor o panorama sinistro de uma história
de roubo que fala muito daquilo em cima de que se estrutura o
coração de uma fortuna financeira, aqui a mesma
lógica se aplica ao lento lapidar de um diamante, que Radford
mostra desde sua saída de um lamaçal até
a forma final. Mas, é de lamaçal que ele quer falar,
e é bem curiosa a comparação entre a primeira
imagem do filme, das mãos que chafurdam na lama, com o
destino final dos diamantes roubados. Assim como em Spike Lee,
o filme de Radford usa a estrutura de um thriller para
falar de uma estrutura corrompida e eminentemente suja. Só
que face a contemporaneidade latente do cinema de Lee, Radford
opõe a elegância de um cinema que quer dialogar com
todo um passado do cinema de gênero; um cinema que se delicia
acima de tudo com a construção de seus diálogos
cheios de malícia e jogos de palavras, e com a presença
de tela de Michael Caine e Demi Moore, em papéis bem mais
suculentos do que os que vêm recebendo nos últimos
anos. O resultado revela um artesão bem mais talentoso
do que a fama do diretor faria esperar, capaz de não se
levar a sério demais, mas também sem ligar apenas
o piloto automático e cumprir um job.
O Procurado (Wanted), de
Timur Bekmambetov (EUA, 2008)
por Eduardo Valente
Nunca tinha visto os outros filmes
de Timur Bekmambetov (no caso, os exibidos no Brasil, Guardiões
da Noite e Guardiões do Dia), mas tinha curiosidade
em vê-los pelo simples fato de que é um diretor que claramente
possui um estilo próprio, tanto assim que Hollywood o quis levar
da Rússia para lá, sendo que ele realiza filmes principalmente
marcados pelo uso de efeitos especiais em seqüências de ação –
talvez a especialidade onde os americanos menos precisem de ajuda
externa. No entanto, uma rápida passada de olho (e o termo talvez
seja mesmo o mais adequado para a experiência aqui proposta) neste
O Procurado e podemos concluir que este estilo próprio
de Bekmambetov é exatamente isso e apenas isso: estilo. Bekmambetov
parece bem mais interessado em passar horas planejando seqüências
de
ação improváveis que exijam o máximo possível de sua equipe de
efeitos do que em sequer pensar sobre conceitos antigos como construção
de cena, clima, ritmo, personagens. Para Bekmambetov, o que serve
é a lógica do “quanto mais, melhor”, no sentido da quantidade
de cenas de ação e do tamanho destas cenas (e de suas impossibilidades
físicas – algo que não é uma questão num filme que se assume em
sua origem quadrinesca, mas que torna-se um incômodo por
parecer apenas interessado em afirmar-se como tal excessivamente).
Neste sentido, talvez o cinema de ação hollywoodiano atual
tenha toda razão no seu interesse pelo cineasta de origem cazaque,
uma vez que cada vez mais parece ser apenas isso que se busca
nas produções mais industriais: algo que mova o espectador a ir
até o cinema pensando ir ver algo que nunca viu – e nisso os trailers
dos filmes de Bekmambetov, em sua compilação de imagens incríveis,
são extremamente convincentes. No entanto, talvez eles também
sejam o formato ideal para o cineasta trabalhar, porque quase
duas horas deste cinema pensado para funcionar segundo a lógica
de um espalhafatoso desfile de escola de samba (de efeitos visuais)
é dose. Bekmambetov inaugura no cinema a categoria do kitsch
hi-tech.
PS
Te Amo (P.S. I Love You),
de Richard LaGravenese (EUA, 2007)
por Paulo Santos Lima
Por motivo óbvio, e outro mais análogo, este filme de P.S.:
Eu Te Amo deixou de ser um interessante filme de amor. O óbvio
é a direção bastante comprometedora de Richard LaGravenese (num
filme de roteiro, como esse, já que o diretor não é um pensador
de imagens, cabe a ele pelo menos resolver seus enguiços – como
uma introdução que apresenta o casal central nas suas diferenças
e amores, o que não é propriamente uma questão ao longo do filme).
O outro problema remete ao avizinhamento com o popular e bastante
fraco Ghost – Do Outro Lado da Vida, no que consegue o
impossível: ser inferior a este grande sucesso, ao ser extremamente
didático, explicado, verbalizado, como se o espectador não conseguisse
concatenar um plano a outro e não pudesse ver um filme com final
minimamente surpreendente. Pode-se
dizer que é um cinema ao nível do pior que fora realizado no primeiro
momento do sonoro, nos anos 30, na ausência total de mise-en-scène
resultando em algo quase teatral, de falas impostadas e conteúdo
francamente pobre (vale lembrar que havia nos anos 30 exceções
como os Irmãos Marx e seu texto afiadíssimo). Neste drama romântico,
o “galã” Gerard Butler morre prematuramente, de doença fatal,
e, antes de ir pro lado de lá, deixa cartas para a sua amada (Hilary
Swank), passando-lhe atividades, a fim de que ela exorcize a dor
da perda. Em vez do fantasma de Ghost, que ajuda a sua
pequena a seguir em frente (fazendo um lance fundido entre o espiritual
e action movie), aparecendo para nós como imagem na tela,
fazendo assim presença “concreta” no espaço diegético, temos Gerard
Butler aparecendo nos inúmeros flashbacks puxados pela
desolada mulher, que vai à Irlanda natal do seu macho falecido,
conhece outros homens, tem a mamãe sabe-tudo e tal. Mas, aos que
julgam esse filme mais físico, laico, que Ghost: a natureza
da imagem dos dois filmes é a mesma (ambos são obras cinematográficas)
e, assim sendo, Butler é tão “fantasma” quanto Patrick Swayze.
Ou, melhor dizendo, tão imagem quanto. E que terror de imagem:
se Ghost já tinha suas assombrações como cinema, P.S.:
Eu Te Amo é um verdadeiro “filme de terror”.
Quarteto
Fantástico e
o Surfista Prateado
(Fantastic Four - Rise of the Silver Surfer),
de Tim Story (EUA, 2007)
por Felipe Bragança
Encontrar um equilíbrio na conjugação entre
as gags físicas/malabarismos gráficos com alguma consistência
de dramaturgia é o desafio mal-urdido da maioria das adaptações
cinematográficas advindas das HQs. Esse segundo filme do Quarteto
Fantástico só reafirma a falta de sutilezas e a precariedade
de encenação que o diretor Tim Story carrega em seu trabalho,
o que, combinado com essa sinuca de bico primordial, faz do filme
um raro espécime de lixo cinematográfico. Quarteto Fantástico
e o Surfista Prateado é um impressionante casamento de precariedades,
que vai do casting aos efeitos especiais, não interessado
em conseguir mais do que indicar um sentido de espetáculo blockbuster
que nunca se dá exatamente na tela. Com cara de “filme-de-matinê-que-não-ousa-dizer-seu-nome,
o filme não deixa isso exatamente claro, mas parece optar conscientemente
por ser uma peça de enredo e encenação infantil – o que significa,
no seu entendimento, falas reiterativas da imagem, gags
plantadas como muletas de marcação de timing e desenvolvimento
de trama calcado em peripécias. Se há um referencial, mais do
que os quadrinhos, que na verdade nunca estiveram entre os núcleos
mais prolíficos do universo Marvel, parece ser a série
de animação televisiva dos anos 60 – onde as tramas e situações
de cena primavam pela necessidade de síntese-por-esquetes e de
simplificação gráfica. Resta, aos patalogicamente otimistas, se
interessar pela festejada “aparição” do Surfista Prateado que
de fato, apesar de estar no meio dessa salada de tiradinhas-sacadinhas-truquezinhos,
consegue despertar alguma curiosidade.
Quase Irmãos (Stepbrothers),
de Adam McKay (EUA, 2008)
por Fábio
Andrade
Quase
Irmãos parece movido pela intenção de levar o maior número
possível de armações da comédia contemporânea ao paroxismo completo.
Troca-se a elaboração do texto e o cuidadoso descontrole físico
dos trabalhos anteriores de Adam McKay e Will Ferrel (que co-assina
o roteiro) por um filamento fragilíssimo de dramaturgia, um esvaziamento
absoluto das personagens principais (à semelhança de um Napoleon
Dynamite), uma fisicalidade expansiva que flerta constantemente
com o grotesco, e um jorro descontrolado de imprópria (com duplo
sentido) verborragia. Tudo isso poderia fazer de Quase Irmãos
o mais radical filme da excelente fase que atravessa a comédia
norte-americana, não fosse um pequeno problema: nada funciona.
O incômodo maior é ver que, ao contrário de um Trovão Tropical,
a mise-en-scène de McKay nunca se deixa contaminar pela
semente anárquica de onde parece ter nascido o projeto, fazendo
com que a natureza extrema da relação das personagens de Ferrel
e John C. Reilly pareça apenas uma grande malcriação. Uma vez
cristalizadas as bases, Quase Irmãos se torna um triste
testemunho de artistas tão instigantes se esforçando descontroladamente
para pegar um bonde que eles, na verdade, nunca haviam abandonado.
No descontrole dessa miopia, acabam se jogando do trem.
Quatro Minutos (Vier Minutem),
de Chris Kraus (Alemanha, 2006)
por Fábio Andrade
Quatro
Minutos é o tipo de filme que obriga o espectador a escolher
qual metade do copo considerar: a cheia, ou a vazia. Para os otimistas,
Chris Kraus reserva uma meia dúzia de planos realmente penetrantes,
de impacto alcançado pelo domínio da composição visual, ou pelos
movimentos bem orquestrados de câmera e vetores em quadro. Para
os menos generosos (ou menos condescendentes – ainda uma questão
de metades), Quatro Minutos irrita pela previsibilidade
de sua lógica interna; pela maneira como cada personagem é esvaziado
de vida própria para funcionar apenas como vagão de um valor específico
e unilateral que sirva à lógica do filme; ou, pior, pela pressa
que faz a montagem e a decupagem jogarem contra qualquer construção
climática que a narrativa indique. São qualidades e defeitos que
vêm de um mesmo lugar: um desejo de ser constantemente correto,
bem comportado. O primeiro e forte plano do suicídio é logo desperdiçado
por um vai-e-vem de montagem que privilegia o comentário narrativo
à instalação do espectador; um travelling belíssimo que
acompanha a professora de piano caminhando pela prisão, com uma
trilha de choque ao piano, perde sua força autônoma de construção
com a necessidade de fazer a música ser diegética. Há, portanto,
esse limite de conforto que Kraus nunca está disposto a transgredir:
se há crise, ela deve ser reduzida à narrativa, sem nunca contaminar
a realização cinematográfica. Restam, ao fim, esses momentos mais
fortes que, como o filme, pairam um pouco acima do ignorável,
mas bastante abaixo do suficiente.
Quem
Disse que é Fácil? (Quién Dice que es Facil?),
de Juan Taratuto (Argentina/Espanha, 2007)
por Eduardo Valente
Este
filme hispano-argentino poderia ser apenas mais uma comédia sem
graça se não fosse o fato de sua narrativa nos lembrar tanto o
grande Virgem de 40 Anos, de Judd Apatow – e aí, ao circular
num mesmo espaço narrativo, este aqui mostra as garras de sua
verdadeira vocação à mediocridade. Tudo que há de um uso radicalmente
inteligente dos clichês de personagens e situações cômicas em
Apatow aqui se resume a momentos dignos do pior de um Zorra Total,
seja em trabalho de atores, filmagem ou roteiro. Mas, muito mais
grave ainda: tudo que lá é incômodo e afirmação do diferente,
do “fora da norma” como valor positivo, aqui se torna narrativa
de domesticação, de “melhora do ser humano ao encarar os seus
defeitos”. Entre inaptidão cinematográfica e conservadorismo atroz,
não sobra nada para manter o interesse. Talvez o grande mérito
do lançamento deste filme no Brasil seja a chance de vermos alguns
dos toscos filmes mais comerciais realizados pelos hermanos que,
por quase não chegarem aqui (que, curiosamente, quando chegam,
acabam indo para o nosso circuito “de arte” – como acontece também
com o cinema francês), costumam ser ignorados por espectadores
que cismam em dizer que o cinema argentino vai melhor do que o
brasileiro. Quem Disse que é Fácil? ajuda a relembrar que
tudo é questão de amostragem.
Ratatouille
(idem), de Brad Bird (EUA, 2007)
por Francis Vogner dos Reis
Na
animação em longa-metragem, Brad Bird é hoje um dos principais
nomes (abaixo somente de Hayao Miyazaki). Sua estréia, com O
Gigante de Ferro, atraiu menos atenção do que o filme merecia,
especialmente no Brasil: a fábula do garoto que faz amizade com
um robô tinha como moral a possibilidade da escolha, e, de alguma
maneira, Os Incríveis também trabalhava a mesma prerrogativa,
só que de modo diverso. Ratatouille vai além
nessa questão, porque vê na capacidade de escolha princípio de
criatividade – a escolha é essencialmente opção pela originalidade.
“Qualquer um pode cozinhar”, diz o grande chef francês
Gusteau em Ratatouille, o que não é exatamente original,
mas que estimula o rato Remy a rejeitar o lixão em que sua família
de roedores se esbaldava e, levando a sério a duvidosa sentença
do chef Gusteau, acaba no restaurante do tal chef já falecido
e passa a inventar pratos com a ajuda do abobado Linguini, que
leva todo o crédito. O lema de Gusteau à primeira
vista causa desconfiança, de uma ingenuidade que parece mais um
ditado da Disney do que algo proveniente de Brad Bird, que é um
autor que nunca se deixou levar por esse tipo de moral pilantra
(travestida de exultante e ingênua). Mais à frente essa frase
será reformada pelo crítico Aton Ego que, visto como virulento
e destrutivo, é não só generoso com o prato “ratatouille” feito
pelo ratinho Remy, como ao invés de emitir juízo sobre o prato,
ou mesmo traçar algumas impressões, faz uma digressão sobre a
compreensão do que seria um processo de criação artística. E isso,
é extremamente atual.
Remissão, de Silvio
Coutinho (Brasil, 2006)
por Eduardo Valente
A primeira questão aqui
é o latente amadorismo, mesmo tendo em vista o claro empenho
dos envolvidos no projeto. Desde a insuficiência técnica
(que começa com uma fotografia absolutamente descompensada
na sua captação de luz, e termina com um transfer
de digital para película que resulta numa das imagens mais
feias que vimos no cinema brasileiro recente - que em algumas
salas não será visto, pois inteligentemente se usará
a projeção digital), passando por um elenco às
raias do constrangedor (com variações entre atores
quase straubianos, pelo completo anti-naturalismo e mecanicismo
da leitura das frases do roteiro; e
outros exagerados e fora de tom), uma dramaturgia completamente
capenga (o filme todo se resolve em falas e mais falas, onde personagens
explicam tintim por tintim as personalidades uns dos outros, e
as situações vividas e suas interpretações),
e finalmente terminando com uma concepção artística
absolutamente fora de contato com qualquer contemporaneidade de
produção audiovisual, remetendo às telenovelas
do SBT dos anos 80/90 (com destaque para a incessante e exagerada
trilha sonora e os cortes abruptos da edição). São
comentários que parecem duros com o filme, mas infelizmente
relatam o que foi visto na tela. Remissão, que tem
mais cara de um exercício, de um aprendizado do que um
produto finalizado e preparado para um mercado audiovisual de
hoje. Infelizmente suas chances de chegarem ao público
nos cinemas são rarefeitas, já no nascedouro do
projeto, completamente desvinculado de qualquer linha de comunicação
atualmente existente. Infelizmente não podemos dar continuidade
a um ciclo (que nada tem de virtuoso) de condescendência,
que não faz bem nenhum nem a Coutinho e seus colaboradores.
A eles, nosso desejo de ver outros trabalhos no futuro, mas a
indicação para que consigam montar estrutura técnica/artística
mais elaborada, ou adequem seu processo de produção
ao circuito exibidor seguinte.
O Sacrifício
(The Wicker Man),
de Neil LaBute (EUA, 2006)
por Francis Vogner dos Reis
No início de sua carreira, o nome de Neil
Labute trazia consigo a marca do “estilo sem estilo” e ao mesmo
tempo a preocupação sobre a eterna crise entre o masculino e o
feminino, como visto em filmes como Na Companhia de Homens
e Seus Amigos, seus Vizinhos. Mas, não estamos falando
de um herdeiro de Howard Hawks, e diferente do mestre, essas atribuições
à obra de LaBute não lhe caem como elogio. O cineasta, que em
seus primeiros filmes usou a parcimônia cênica como princípio
que visava alcançar uma sinceridade de relato, só conseguiu desse
modo atingir um resultado modorrento, preguiçoso e demasiadamente
calculado. Agora ele aparece com O Sacrifício, versão “labutiana”
de O Homem de Palha de Robin Hardy, cult inglês
da década de 70 francamente engraçado e que conseguia ser admirável
por fazer uma alegoria muito divertida e interessante da simbologia
do falo. Comparar a versão de LaBute a de Hardy não dá pé, até
porque a nova versão que chegou aos cinemas é de auteur.
O
Sacrifício é um filme de gênero (suspense/horror), ou pelo
menos se apresenta assim. O filme de gênero pede imersão no mundo
criado pelo cineasta, mesmo quando se constrói em cima da “farsa”,
assim como nos filmes de DePalma e de Welles. Nesses filmes existirá
uma moral que surgirá de todas as opções cênicas do cineasta,
como assim nos ensinaram Hitchcock e Fritz Lang. Pois Neil LaBute
não se preocupa em nos inserir no seu mundo dessa maneira: a moral
é sempre o princípio, algo que não se reflete exatamente em suas
opções cênicas, mas está presente na história, que independe de
toda a condução das ações e composição de plano. Interessam sobretudo
as relações homem-mulher, baseadas na mentira, na enganação e
no descompasso de duas naturezas que se atraem e se repelem. Nesse
seu último filme, LaBute segue firme nessa regra que não consiste
em uma progressão dramática, não em uma construção que busque
estabelecer o choque, bifurcações e as contradições entre os princípios
masculino e feminino, e de antemão, não crê que dessa relação
surja algo além do antagonismo dos sexos. Assim seu filme segue
em uma nota só.
Santos
e Demônios (A Guide to Recognizing Your Saints),
de Dito Montiel (EUA, 2007)
por Eduardo Valente
Não
é de hoje que cineastas como Woody Allen, João César Monteiro,
Domingos Oliveira ou Nanni Moretti nos mostram que o documentário
não é o único formato cinematográfico que permite que se coloque
em cena aspectos da vida do próprio realizador. No entanto, um
experimento radical como o deste filme de Dito Montiel é um tanto
mais raro: o diretor encena sua própria vida como ficção (encenada
por atores que não ele mesmo), com um personagem principal que
se chama exatamente Dito Montiel. Para além das possíveis complicações
psicanalíticas na relação entre realizador e objeto, entre diretor
e atores (que deixamos para os colecionadores de trivia),
o que sobressai dessa experiência em Santos e Demônios
é justamente uma bastante óbvia falta de distanciamento, o qual
poderia ser muito saudável. Porque o filme de Montiel encontra
sua maior força em tudo aquilo que não diz respeito necessariamente
a ele como personagem: principalmente a recriação de uma adolescência
vivida nas vizinhanças barra pesada da Nova York dos anos 80 que
tem alguns toques de Scorsese bastante óbvios na sua relação com
a violência cotidiana do entorno. No entanto, quando parte para
a porção pessoal, Montiel se embanana com um formato bastante
esquemático de relação entre passado e presente e num espetáculo
de overacting de Robert Downey Jr, Diane Wiest e Chazz
Palminteri. É bem verdade que um e outro (filme e elenco) ganharam
prêmios em Sundance, mas isso entra aqui mais como uma confirmação
dos problemas e excesso de esquemas do filme do que exatamente
como um elogio à alguma novidade que ele traga.
Segredo de Família,
Um; (Un
Secret),
de Claude Miller (França, 2008)
por Eduardo Valente
Durante
sua primeira hora, Um Segredo até consegue enfrentar dignamente
sua obrigação de ser um exemplar típico do novo “cinema francês
de qualidade”, com atores de renome, super-produção e narrativa
engessada. Nesta primeira hora, Miller demonstra elegância nas
idas e vindas entre 1955 e 1985, conta com o carisma à toda prova
de Cecile de France e mantém o interesse. A partir do momento
em que uma terceira linha temporal é somada, no entanto (a que
configura o tal segredo do título), o filme mergulha de vez no
tédio completo, fazendo pouco mais do que ilustrar com imagens
e sons uma narrativa que, para além de ser toda mastigada por
uma narração em off onipresente, já mais do que antecipamos
e compreendemos. É quase triste ver uma Ludivine Sagnier tão apagada
e pro-forma em um papel de sofredora orgulhosa num filme que logo
se revela que não será lembrado como nada além de apenas mais
uma obra sobre o sofrimento judeu durante os anos do nazismo.
Os Sem-Floresta
(Over the Hedge),
de Tim
Johnson e Karen Kirkpatrick
(EUA, 2006)
por Felipe Bragança
O filme começa como uma fábula anárquica
sobre a relação entre a ordem urbana e a marginalidade que a circunda
– brincando com a figura do protagonista guaxinim, que vive dos
restos de alimentos industriais humanos e vê no surgimento de
um novo condomínio de luxo a possibilidade de um banquete interminável
em seus pequenos furtos. Aos poucos, depois que ele se encontra
com o núcleo de co-protagonistas adocicados, a trama acaba por
se desenhar em direção a um elogio pesado do ideal do núcleo familiar,
o que, se não faz do filme um equívoco completo, sufoca muito
de sua graça onomatopéica e hiperbólica, dando uma cama por demais
pedagógica e conseqüente a cada ato dos personagens. Com habilidade
na construção de cenas de perseguição e exploitation dos
recursos de velocidade e liberdade da “câmera” ilimitada do 3D,
além de alguns personagens mais complexos do que a média do cinema
infanto-juvenil, Os Sem-Floresta é mais uma obra a cumprir
o papel de um didatismo moral pré-escolar costurado a um humor
referencial – salpicado aqui e acolá para agradar os mais velhos.
Em um panorama mais amplo, é uma pena ver a animação 3D no cinema
industrial norte-americano ficar tão limitada a formuletas de
gênero que não desenvolvem nem linguagem, nem searas temáticas,
nem sequer criam assombro pelo impacto gráfico. Estão lá para
cumprir a temporada de verão, somente. E o fazem, parece, sem
muita vontade.
O Sequestro
de um Herói (Rapt), de Lucas Belvaux (França, 2009)
por Filipe Furtado
O
Seqüestro de um Herói acompanha, com um olhar clínico, as
movimentações e múltiplas agendas de interesse entorno do seqüestro
de um grande industrial francês, o que termina causando diversas
revelações desagradáveis sobre os excessos da sua vida privada.
Estão lá seu cativeiro doloroso – o seqüestro se arrasta durante
dois meses -, as tentativas da família de lidar tanto com o preço
do resgate (acima do esperado) como com o escândalo na mídia,
a ação da polícia (que nunca parece muito mais preocupada
com seus próprios interesses do que com a integridade física do
entrevistado ou a saúde mental de seus familiares). Todas
estas ações externas são delineadas com grande precisão por Belvaux,
mas escondem um profundo desinteresse por cada um destes agentes
para além das suas funções de trama. À primeira vista este tratamento
sugere uma radicalização de exercício de gênero como outras a
que o cinema francês se dedica de tempos em tempos, mais um filme
de procedimento do que um filme de suspense. A virada no último
ato após o fim do seqüestro, porém, expõe como o projeto de Belvaux
é eficaz na teoria, mas frágil como experiência cinematográfico.
Fica claro ali que boa parte do tom oco do filme estava ali para
suportar a completa ausência de empatia tanto do protagonista
pelo sofrimento da esposa e filhas, quanto destas pelo dele. No
papel, todo o processo de encastelamento do protagonista orgulhoso
completa muito bem o tom que Belvaux impusera até então, mas ele
termina só por reforçar como o filme é um exercício em opacidade
cuja competência na construção de cenas esconde um centro desprovido
de interesse. Seu grande mérito é seu completo esvaziamento.
Sim
Senhor (Yes Man), de Peyton Reed (EUA, 2008)
por Fábio Andrade
Já
vimos esse filme antes: Jim Carrey se vê preso às obrigações de
um trato que o induzem a fazer exatamente o oposto que sua profissão
o condicionou. Se O Mentiroso, de Tom Shadyac, era sobre
um advogado que não conseguia mais mentir, aqui temos um executivo
de um banco de empréstimos que tenta mudar sua vida dizendo "sim"
para qualquer pedido que lhe é feito. Sim Senhor traz Jim
Carrey de volta para a comédia, terreno fértil que o ator vem
visitando com cada vez menos frequência. O grande problema de
Sim Senhor é que ele retrocede a conjunção explosiva de
olhares marcada pelos trabalhos de Carrey com os irmãos Farrelly
(até hoje, os diretores que melhor compreenderam sua subversão
física), e retoma o que o filme de Shadyac tinha de mais problemático:
a elasticidade física e moral da personagem de Carrey é vista
como momento de exceção que o filme se vê obrigado a domar. A
mise-en-scène automática e convencional isola Carrey em
momentos de show solo que, mesmo quando funcionam, sempre parecem
existir à revelia da lógica imposta pelo filme. Mais embaraçoso,
porém, é perceber que Peyton Reed passa em branco pela abordagem
reacionária de sua direção, acreditando estar realizando uma metáfora
política libertária. Ao contrário, traveste a mediocridade
como uma parábola sobre o valor da moderação.
Um Sonho Dentro de um Sonho (Slipstream)
de Anthony Hopkins (EUA, 2007)
por
Eduardo Valente
Fica
lançado o desafio: será difícil encontrar
um texto que seja sobre Um Sonho Dentro de um Sonho que
não cite o nome de David Lynch (este aqui, por exemplo,
acabou de fazê-lo, na primeira frase). Mas também não
é difícil entender a associação, afinal
o filme dirigido por Anthony Hopkins reprisa uma série
de expedientes narrativos (um estado de confusão de registro
entre realidade e sonho, a falta de uma aparente lógica
de estrutura da história), situações (localizar
esta confusão em meio ao ambiente de uma filmagem, várias
cenas em estradas com carros que dirigem rápido, explosões
eventuais de violência) e imagens/figuras (a típica
lanchonete americana com suas garçonetes e clientes, os
mafiosos e produtores de cinema esquisitos e over the top)
bastante associados ao cinema de Lynch. No entanto, talvez fosse
mais útil pensar no que o filme de Hopkins se diferencia
totalmente dos de Lynch para entender o que acaba sendo este filme:
afinal, se Lynch sempre foi um cineasta da imersão e do
fascínio, estas duas são expressões que passam
longe do filme de Hopkins. Ao tentar nos mergulhar neste estado
de confusão, Hopkins opta por um (ab)uso de determinadas
ferramentas (planos em repetição, alterações
de velocidade constante, flash frames, fusões de
imagens, mudança de registro entre o preto-e-brando e o
colorido, etc) que só conseguem nos distanciar completamente
daquilo que se passa na tela, que passa a obedecer então
os ditames da contemplação, ao invés da imersão.
E aí, o filme todo não funciona a partir de um estado
emocional, mas sim racional, restando então ao espectador
uma relação fria com o que vai se tornando cada
vez mais um jogo bastante estéril de metalinguagem, misturada
com uma pouco interessante reflexão sobre o estado mental
de um criador.
O Tigre e a Neve (La
tigre e la neve),
de Roberto Benigni (Itália, 2006)
por Felipe Bragança
Tão
difícil quanto simular o cômico, é simular a ingenuidade. Em mais
essa fábula açucarada, o jogo de humor ingênuo de Roberto Benigni,
de romantismo exacerbado, esbarra mais uma vez nesse problema. Ao
invés de procurar beleza, poesia e encanto naquilo que o rodeia
como vida, o diretor-personagem-roteirista-clown parece tentar
(como no famigerado A Vida é Bela) impôr à beleza estatuto
de ideologia. Como toda ideologia opressiva, essa ingenuidade
humanística de Benigni faz com que toda a realidade, ou a verdade
tocada pelo filme, estejam servindo apenas como pano de fundo
de um cinema que não filma, que não vê (filma-se mal, às cegas,
aliás...) apenas declama sua vontade. A guerra do Iraque é só
uma cortina, um genérico da violência que não consegue em momento
algum soar verdadeiro, vivo, pertinente – chega a ser constrangedor
como os iraquianos têm menos interação com o personagem central
do que um camelo. Talvez porque fosse mais fácil adestrar um camelo
e colocá-lo para fazer cenas sem diálogos, já que os iraquianos
aparecem sempre como figuras estranhas, paspalhas ou fazendo figurações
genéricas, numa dramaturgia onde só interessa a "mulher dos
olhos dele". Uma fábula sobre o egoísmo, ou o altruísmo egoísta,
em todos os sentidos – inclusive o político. Nada interessa nesse
mundo onde o amor romântico não amplia o sujeito, só o diminui,
o escraviza, o simplifica. Poesia de cinema, assim, para
Benigni, como cegueira dos gestos, não como potência de vida.
Todos Contra Zucker (Alles auf Zucker!),
de Dani Levy (Alemanha, 2004)
por Francis Vogner dos Reis
Há
duas coisas a se dizer a respeito da comédia Todos Contra Zucker:
a primeira é que todo o artesanato do filme é tão desleixado e
capcioso que parece impossível surgir dali algo de interesse.
Só que toda essa feiúra plástica está a serviço da visão de mundo
do protagonista, um ex-comunista de origem judaica que se vê obrigado
a se reconciliar como irmão, um judeu ortodoxo, e se submeter
a uma série de rituais de luto para receber a herança da falecida
mãe. A segunda coisa a dizer é: será que esse arranjo entre forma
a conteúdo (para separar grosseiramente essas duas dimensões)
dá em alguma coisa? Sim. Todos Contra Zucker é um filme
do arranjo entre duas partes contraditórias, porque ele se equilibra
a todo momento em dicotomias irreconciliáveis: os dois irmãos
unidos pelas circunstâncias, uma família judaica ortodoxa e outra
sem religião, o protagonista que fica entre cumprir os rituais
e participar de um torneio de sinuca, o rabino que descobre ter
uma filha com a prima lésbica, a Alemanha Ocidental e a Alemanha
Oriental, etc. Tudo isso engrena na base do arranjo. As coisas
não se resolvem, mas se arranjam. O humor vem daí. Existe alguma
graça – e, surpreendentemente, alguma coerência.
Topografia de um Desnudo, de Teresa
Aguiar (Brasil, 2009)
por Filipe Furtado
Desde
os créditos iniciais, com depoimentos de jornalistas e historiadores,
Topografia de um Desnudo deixa clara a sua razão de existir:
resgatar a história da operação do governo Carlos Lacerda para
tirar os mendigos das ruas do Rio no começo dos anos 60. Só que
a diretora Teresa Aguiar opta um tanto surpreendentemente por
rechear o filme de elementos estranhos para um filme-denúncia,
como uma estrutura narrativa super-elaborada e digressões anti-realistas
(que ficam mais claras quando ela dedica o filme a Jean-Claude
Carriére). O filme tropeça especialmente na sua incapacidade de
sugerir o Rio do começo dos anos 60 (as tentativas de estabelecer
o momento se resumem a múltiplos planos da fachada do Copacabana
Palace) e nas tentativas de dar aos assassinatos dos mendigos
um grande peso no seu momento histórico. Sabemos bem das dificuldades
de fazer filmes de época com orçamentos enxutos, e de forma alguma
pretendemos diminuir a importância da história que Aguiar resgata,
mas a soma destes dois elementos rouba da “operação mata mendigos”
sua especificidade, e empurra o filme rumo à abstração. Quando
o filme termina com uma seqüência de policia militar espancando
manifestantes, como muitas outras que já vimos, resta pouco de
Topografia para além do genérico. Ao fim, os créditos trazem
de volta as entrevistas com especialistas e a despeito das suas
genuínas boas intenções não restam dúvidas de que mais do que
resgatar sua história, Topografia de um Desnudo a vampiriza.
Vênus (Venus), de Roger Michell
(Inglaterra, 2006)
por Paulo Santos Lima
É
fato que nenhum cineasta dissertou visualmente — com imagens,
cinema — sobre a beleza da mulher como Jean-Luc Godard, mostrando
que não basta colocá-la na tela: mais que isso, há a mise-en-scène
e, quando não, há o olhar da câmera, a luz, a abordagem que o
autor faz do objeto em cena. Pois a única beleza visual proferida
em Vênus é a da performance de Peter O’Toole, o que parece
pouco, visualmente falando. O
diretor Roger Michell assina uma obra metalingüística, que se
refere diretamente ao próprio O’Toole como um dos maiores astros
e galãs do cinema britânico... e que aqui se sujeita a um número
quase circense, aproximação imediata ao combalido Calvero de Luzes
da Ribalta. Estamos diante de um filme de ator, cuja mulher,
de fato, é de uma beleza meio subcutânea – que faz dela das melhores
aparições recentes na tela, de cair o queixo. Ela
é Jodie Whittaker, que faz Jessie, que reascende a porção macho
de Maurice (O’Toole), renomado ator de teatro que cruzou os 70
anos. A pequena, generosamente assistida pela câmera, que faz
questão de mostrar seu corpo como se estivéssemos defronte uma
Playboy anos 50, mais comportada, ilumina, também, a rotina do
galante veterano. E, se o filme parece, lá pela meia hora de projeção,
rascunhar um interessante (ainda que caretamente filmado) jogo
entre a pulsão de vida de Jessie e a ladeira declinante de Maurice,
gerando conflitos sexuais que soam como uma screwball comedy
mais puxada para o drama, seu terço final declara o vínculo entre
a beleza e a juventude. Maurice, severamente abatido por uma operação
de próstata, será, meio à Servidão Humana e O Anjo Azul,
maltratado pela malvadinha Jessie. Sobre essa queda do filme,
vale olhar o que Inácio Araújo diz em seu texto publicado na Folha.
A conclusão do filme fica na boca de uma garçonete que, quase
no epílogo, vê uma foto de Maurice ainda jovem, e diz que “realmente
ele era muito bonito”, algo que a mesma não percebera quando ele
visitava o estabelecimento. Claro, tanto ela quanto o filme vêem
a beleza como uma simples convenção estética, jamais pelo modo
como uma pessoa se coloca no mundo.
Voltando a Godard, é assim que se faz a beleza de seus filmes:
pelo modo como ele coloca a câmera em cena. Algo que Michell faz
muito mal neste seu Vênus.
Um Verão para Toda
a Vida (December Boys),
de Rod Hardy (Austrália, 2007)
por Cléber Eduardo
Nem
é preciso pesquisar a filmografia do australiano Rod Hardy para
desconfiar de sua alfabetização dramática e visual na TV. Antes
de estrear em longa-metragem com December Boys, cujo maior
apelo de marketing é a presença (sem bruxarias) do inglês Daniel
Radcliffe, o Harry Potter, Hardy dirigiu um amontoado de programas
e séries. Pois seu currículo está na tela. Do primeiro ao último
plano, sem exceção, parece haver um engano – não apenas da realização,
mas principalmente dos programadores dos nossos cinemas. O filme,
frente a tantos que acabam não lançados por aqui,
não estaria melhor abrigado na grade do Telecine Light? Não foi
feito com esse objetivo? Pois parece. Para mostrar o verão inesquecível
de quatro garotos órfãos no litoral australiano, lança-se mão
do narrador memorialístico que, com voz de terceira idade, reconstrói
as experiências de infância antes do reencontro com os amigos
no mesmo lugar nos momentos finais. Um deles passa esse verão
abrindo frentes no conhecimento prático do sexo. Os demais empenham-se
em serem adotados por um casal. Molecagens de um lado. Beijinhos
de outro. Pequenos riscos, eventualmente, no contato com a natureza.
E uma aparição de Nossa Senhora. É sério. A Virgem aparece no
fundo do mar.
Vida Durante a Guerra,
A (Life
During Wartime),
de Todd Solondz (EUA, 2010)
por Filipe Furtado
Após
o considerável sucesso no circuitinho de Bem Vindo à Casa das
Bonecas e, especialmente, Felicidade, a carreira de
Todd Solondz entrou em crescente irrelevância. O sucesso inicial
destes filmes – sitcoms malvadas com bom ouvido para diálogos
cruéis – diz mais sobre o bom timing do cineasta do que
seu talento. Quando a forma distinta de esperteza em que o cineasta
americano se especializara saiu do gosto do espectador, seu cinema
igualmente desapareceu rumo à completa irrelevância. Visto assim,
A Vida Durante a Guerra não é de fato um filme, mas uma
operação: seu objetivo não é filmar ou iluminar nada, mas simplesmente
reviver seu autor. Trata-se de uma seqüência de Felicidade,
lançando mão do recurso de substituir os atores do filme original
por um grupo novo a reinterpretar os mesmos personagens. Solondz
regurgita com pequenas variações o mesmo material miserável do
seu original (a referência a guerra no título é menos um dado
no filme e mais reflexo de quão desesperado o cineasta se tornou,
e do tom exploitation da empreitada como um todo). O suposto
interesse do filme reside justamente no seu truque central, e
mesmo ali o experimento de Solondz fracassa, justamente porque
seu cinema nunca lidou com personagens, mas somente tipos. Tanto
faz se em cena está Dylan Baker ou Ciaran Hinds, já que a troca
de ator só reforça que o que vemos é uma superfície dotada de
tiques. Se algo interessa neste processo é justamente o quanto
esta opção reflete na posição do cineasta: A Vida Durante a
Guerra é uma operação desesperada, um cineasta tentando desesperadamente
reanimar sua carreira por via de um jogo de marionetes em que
seus bonecos jamais ganham vida.
Violência
em Família (Suburban Mayhem),
de Paul Goldman (Austrália, 2006)
por Francis Vogner dos Reis
Tardio
exemplar do que de pior se fez na década de noventa, Violência
em Família é uma versão sujinha de bobagens diluídas do cinema
de Tarantino. No caso, Violência em Família já sai perdendo
por ter como referência o que já era cinema de segunda categoria
(Danny Boyle e Iñaritu), que acreditavam poder falar de coisas
sérias a partir de uma pegada dinâmica, gerando curto-circuito
entre o pop e má consciência, tendo como resultado o abjeto.
Aqui, no caso, filha planeja matar pai para, com o dinheiro da
herança, tentar livrar o irmão da cadeia. Como escândalo pouco
é bobagem, além de levar a filha bebê a tira-colo nas trepadas
improvisadas no carro, seduz um deficiente mental e introduz a
amiga santinha ao mundo das drogas (que maldade!). O filme de
Goldman é um pout pourri de formas, cacoetes, um reprocessamento
de um cinema que já era sem substância e que, para comunicar e
seduzir, precisa organizar o infame de maneira engraçadinha, sensacionalista.
A escolha pelo vulgar não é orientada pelo gosto, mas pela necessidade
de alguma contundência, como se a força do material, naturalmente,
tivesse de emergir na quantidade avassaladora de situações sórdidas,
e se estas, para poderem ser minimamente “digeríveis”, precisassem
a todo tempo soar grotescas. Márcia Goldshimidt e Geraldo já fizeram
melhor.
Vips
- Histórias Reais de um Mentiroso,
de Mariana Caltabiano (Brasil, 2010)
por Eduardo Valente
Nas
entrevistas e apresentações que tem feito do seu filme VIPs,
ficção baseada no livro que deu origem a este documentário aqui,
o diretor Toniko Melo curiosamente diz que “essa história só podia
ser uma ficção”. A julgar por Histórias Reais de um Mentiroso,
talvez ele tenha razão. Porque depois dos primeiros cinco minutos,
em que a diretora coloca em jogo toda uma série de ferramentas
instigantes (como animação, música irônica, falsas imagens de
arquivo) para brincar com a idéia de fabulação, que é intrínseca
ao personagem de Marcelo (protagonista do documentário), o filme
parece se esvaziar de idéias realmente potentes como cinema, e
passa praticamente a fazer uma longuíssima reportagem, ouvindo
principalmente a voz dele. Claro, entendemos que não dá para saber
se essas histórias são reais ou não, mas ainda assim essa constatação
dura somente um certo tempo como de real interesse. A tentativa
da cineasta de se inserir como personagem, limitada como é a praticamente
só o começo e uma “reviravolta” final também parece subutilizada
demais para realmente interessar. O que sobra de real força são
as imagens originais de Marcelo “atuando”, seja no programa Amaury
Jr, seja no caso da rebelião de cadeia. São momentos de brilho
no que acaba passando como uma longa conversa com um pescador
– e aí talvez fosse mais interessante explorar mais longamente
este discurso, e não ficar intervindo e ilustrando ele o tempo
todo.
O Visitante (The Visitor), de
Tom McCarthy (EUA, 2008)
por Eduardo Valente
Durante
os quinze primeiros minutos de sua duração, O Visitante
mantém o espectador interessado pela sua maneira de seguir um
personagem que, a princípio, não conseguimos entender porque interessaria
ao filme. No entanto, se estamos atentos ao logotipo que abre
seus créditos (da Participant Productions, companhia americana
especializada na “ficção liberal”) e a algumas pequenas pistas
que vão sendo deixadas pelo caminho, não podemos deixar de ter
uma pontinha de suspeita de que o pior pode acontecer – só não
esperaríamos que acontecesse com a força arrasadora que torna
o filme uma quase comédia involuntária. A partir do momento em
que seu protagonista (um amargurado professor universitário americano
sem motivação na vida após a morte da esposa) conhece um imigrante
ilegal sírio em Nova York e se torna o seu “melhor amigo”, o filme
passa a desafiar todos os limites para diálogos constrangedores,
humanismo de almanaque e previsibilidade narrativa. Nem quando
Hiam Abbass (“a” atriz palestina de exportação) entra em cena
o filme consegue melhorar, construindo sua narrativa de “conversão”
à humanidade do Homem Branco Americano Comum, onde este surge
sempre com maior interesse para o filme do que os imigrantes (sempre
“dignos” e patéticos na sua dignidade funcional), que servem apenas
de pano de fundo para a expiação de culpa em escala global. Ao
fim e ao cabo tudo que o filme quer dizer é que a pior coisa que
pode acontecer para os EUA é se tornar “que nem a Síria”. Taí
uma mensagem politicamente incorreta disfarçada de correção absoluta.
Wood & Stock - Sexo,
Orégano e Rock 'n Roll,
de Otto Guerra (Brasil, 2006)
por Eduardo Valente
Difícil não ter enorme simpatia
pela mais que saudável ausência de bons modos na
transposição dos personagens de Angeli para o cinema
- em especial o momento do filme em que se dá a transformação
do mundo numa versão flower power, evidentemente
mais alegre e amorosa. Mas, igualmente difícil seria se
entusiasmar com o filme de tal maneira que não percebêssemos
suas limitações: um talvez inevitável caráter
de sequência de piadas em esquetes com a duração
de tiras de quadrinho, que parecem melhores quando lidas do que
quando ouvidas, a enumeração de personagens do cartunista,
que algumas vezes parece forçada;
o roteiro claramente "aos trancos e barrancos", que
faz força para ordenar uma história minimamente,
mas não chega a ser de todo bem sucedido (o que é
provado pela rapidez com que se livra da sua própria conclusão).
E, claro, há as limitações técnicas
de um filme de animação que leva anos para ser finalizado,
e que tem um caráter quase de manufatura. Pesados ambos
os lados, Wood & Stock é um filme que vive mais
das partes do que do todo (e as melhores partes quase sempre são
as que incluem Rê Bordosa), embora suas partes boas sejam
mesmo deliciosas. É também um filme para se ver
numa sala cheia de gente, e de preferência sob o efeito
de algumas das "substâncias" do subtítulo.
Como eu vi numa tarde chuvosa de dia de semana no Rio, numa sala
quase vazia, não posso dizer que tenha experimentado o
filme nas condições ideais. Talvez por isso não
tenha batido tão legal.
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