Árido Movie, de Lirio Ferreira
(Brasil, 2005)
por Cléber Eduardo
Estrangeiro no espaço da infância
Árido Movie tem por objetivo instalar a câmera nos ambientes
do sertão, construir um mosaico de tipos da região e colocá-los
em contato com as figuras urbanas, de alguma forma tematizando
o próprio olhar de fora do sertão de Lírio Ferreira. Desde o início,
adota o paralelismo: temos o fio-narrativo concentrado em um sertanejo
urbanizado e um outro dividido por membros de sua família no sertão
pernambucano. Um assassinato junta as duas pontas e desdobra os
focos narrativos, abraçando mais personagens.
A opção pela abrangência de núcleos faz do filme um constante
“enquanto isso...”, sem se concentrar nos momentos necessitados
de mais retenção do espaço e das situações. A impressão é que
sempre se está virando a página, numa narrativa de paralelismos
e simultaneidade, que vive a tirar a câmera dos espaços, sem realmente
tocá-los e absorvê-los. Nesta variedade de focos narrativos, o
filme parece dividir-se em questões para serem levadas a sério
e situações para se absorver com um sorriso no rosto.
As questões sérias são a exploração política da falta de água,
a vingança à morte do pai do sertanejo urbanizado, o sentimento
de estrangeiro dele em seu retorno à raiz. Para salientar a seriedade
da questão-água, aciona-se signos berrantes (além de repetitivos),
de modo a não esquecermos o tema relevante. Assim temos o homem
do tempo, a documentarista e o guru da água, exploradores da seca,
torneiras sem uma gota, imagens do mar, do rio e um título que
não deixa dúvida: o árido da região e da configuração política,
o movie da integração entre sertão e cidade (no caso, integração
promovida pelo filme). Já para valorizar a seriedade da questão-identidade-deslocamento,
o sertanejo urbanizado, mostrando sua erudição e o do próprio
filme, lembra em um diálogo de O Estrangeiro, de Albert
Camus – com o qual nos induz a compará-lo. Mais setas indicativas
sobre como devemos assimilar os acontecimentos exibidos.
Esse esquema de criação de significados tem pouco de construção
ficcional autônoma e muito de ilustração de idéias escritas, com
personagens limitados pelo inevitável simbolismo de suas características
e condições. Como efeito disso, Árido Movie não sustenta
o peso temático e dramático ao qual se lança. Está constantemente
atrás de sua importância enquanto denúncia de permanência da pré-modernidade
das relações políticas.
Sai-se bem melhor na parte sorridente e descompromissada, segundo
julgamento estético e não de relevância social. Nesse segmento
onde nada de “importante” acontece (no sentido de importância
para o país), apenas vemos um trio de amigos que, para dar um
apoio moral a um camarada após o assassinato do pai dele, segue-o
até o sertão – onde, em vez de darem o tal apoio moral, caem na
farra da cerveja e da maconha. Há um filme potencialmente mais
interessante nessa aventura neo-hippie movida por um Opala vermelho.
Um filme que respira, que toma sol, que está de passagem, sim,
mas que também se mistura. Um filme mais próximo da imaginação,
ao invés da Imagem-Nação.
Há algo de explicitamente encenado no espaço humano do microcosmo
sertanejo, que, ao contrário de Cinema, Aspirinas e Urubus,
não constrói autenticidade, seja das pessoas ou dos ambientes.
A não ser que o filme vise o distanciamento, de modo a nos levar
a leituras da realidade, sem reivindicar crença na ficção, esse
é um problema significativo para a relação com as imagens. É grande
o potencial de se ver mais a intenção programada pelo roteiro
e pouco da vida surgida dessas idéias no papel. Roteiro demais
para uma obra aparentemente em busca de afirmação pela mise-en-scène.
Talvez por isso o que soa autêntico é o assumidamente artificial,
casos das imagens de delírio e piração, sobretudo as ambientadas
em um vale, que, em razão da dinâmica de câmera e de cortes, transmite
algo de mágico enquanto cenário. Um campo de força. Nesses momentos
específicos, ou mesmo na sessão de profecia de roda, o dinamismo
da câmera, aliado ao dos cortes, remete a passagens de Baile
Perfumado, o primeiro longa de Lírio, em parceria com Paulo
Caldas. O diálogo com o filme anterior também é evidente em uma
cena cômica: a aula de apertar baseado, dada por Selton Mello,
que é variação da aula sobre como montar a arma em Baile.
O que se nota, nessas aproximações, é um marca, em construção
que seja. Que marca? A de um cinema da instabilidade e da ausência
de economia. Um cinema que, para ser notado, levanta o braço:
“Notem-me!” Nota-se ainda a repetição da situação de Baile.
Estamos em mais um percurso de um sujeito estranho a um determinado
lugar. A diferença é que o estranho, agora, é um sujeito de volta
ao lar original, do qual não se sente parte. Entre o libanês solto
no sertão líquido e esverdeado de Baile Perfumado e o sertanejo
urbanizado colocado nos impasses do sertão seco e amarronzado
de Árido Movie, o índice de estrangeirismo é superior no
personagem cuja proximidade no passado com o sertão apenas salienta
sua distância no presente.
Lírio Ferreira constrói seu segundo passo no longa-metragem tentando
não repetir o primeiro e também evitando romper com ele. Demonstra
mais uma vez uma queda pela câmera mais solta, que gira e faz
curvas, às vezes exagerando ou perdendo o critério das escolhas
nessas ondulações. Em alguns momentos, vincula-se aos antecessores,
Glauber adiante, menos como diálogo e mais como homenagem. Isso
porque, para um cinema com tanta sede de um fluxo mais selvagem,
de excessos, Árido Movie tem sobra de controle estético
e de esquemas narrativos . Um filme limitado, talvez, pelo receio
de ousar por inteiro.
editoria@revistacinetica.com.br
|