sessão cinética
A Regra do Jogo
(La règle du jeu),
de Jean Renoir (França, 1939)
por Fábio Andrade
O
trágico sublime
É difícil voltar a A Regra do
Jogo sem retomar sua história. Clássico improvável
do cinema mundial, o filme de Renoir causou revolta em suas primeiras
exibições: foi banido dos cinemas franceses em sequência
por desmoralizar os valores da sociedade francesa, praticamente
desapareceu da face da terra durante a ocupação
nazista, e sobrevive em uma versão que não é
exatamente a original, remontada quase integralmente (Renoir dizia
que uma sequência de seu corte oficial não teria
sido mais localizada), a partir de planos originalmente descartados
na primeira montagem. Além disso, há também
as décadas de discurso crítico sobre o filme, que
empurram para dentro do texto termos como realismo poético,
profundidade de campo, plano-sequência e o nome de André
Bazin.
O filme segue envolto na própria história, e ela
- que o determina, com muita justiça, como um clássico
- é a mesma que tranca o filme atrás das grades
e, em seguida, nos oferece as chaves.
Retomar A Regra do Jogo hoje obriga, portanto, à
inevitável revisão de termos e leituras. Pois se
a profundidade de campo e a mobilidade dos planos-sequência
permanecem as mesmas, é inevitável que os sentidos
de ambos os procedimentos hoje sejam bastante diferentes. Se,
à época de seu lançamento, A Regra do
Jogo usava esta construção como um arroubo
de realismo no cinema, hoje o filme de Renoir chama atenção
em sentido contrário, pela precisão mecanizada das
coreografias de cena, a orquestração magistral dos
elementos em quadro, a mobilidade expressiva com que os atores
vão do fundo ao proscênio, abrindo a cena em um riquíssimo
jogo de camadas. A relação hoje é menos debitária
a uma sensação de presença - a de que nós
"estamos ali", dentro daquela casa, junto àquelas
"pessoas" - e mais a de um balé absolutamente
marcado, de uma câmera que passa de personagem a personagem
feito telefone sem fio (traço de estilo que mais tarde
seria levado adiante por Robert Altman), que denuncia sua própria
construção, incorporando a euforia da vida burguesa
em erupção, mas sem trazer para a mise en scène
seus resíduos de caos. A crítica só é
possível por o mundo filmado se apresentar em plena harmonia.
Esse
desvio é importante, pois é ele que sustenta, ainda
hoje, A Regra do Jogo como um filme absolutamente crítico.
Muito como fará anos mais tarde Fellini em La Dolce
Vita, essa joie de vivre aristocrata será
contrastada à futilidade de seus hábitos e valores
- traduzidos com perfeição na coleção
de brinquedos mecânicos do marquês, reunindo bonecas
robotizadas de pálpebras caídas a pianos que tocam
por conta própria - e é justamente aí que
o filme produz um curto-circuito. Ao mesmo tempo em que projetamos
um olhar severo à aleatoriedade da vida e da morte (e,
claro, do amor) nos costumes daquele grupo de pessoas que vêem
na matança de coelhos e faisões (e de heróis!)
não mais que o equivalente a um passatempo de inverno,
somos tragados pelo redemoinho irresistível de seu ritmo
de vida, de uma auto-crítica irônica (ressaltada
pela presença em tela do próprio diretor, como o
"parasita" Octave) que não poupa seus próprios
valores. "Acabe com esta comédia", ordena o marquês
em determinado momento; "qual delas?", pergunta seu
empregado.
A Regra do Jogo é um filme ainda hoje fascinante
muito pela maneira como o trágico e o sublime são
obrigados a conviver. Renoir, diretor nada ingênuo, dispensa
a imersão irrestrita - algo que ele tornaria a trabalhar
mais tarde em outras chaves, em filmes como O Rio Sagrado
- e cria um jogo que se abre progressivamente, expondo as fissuras
da construção que são intrínsecas
à aparência de perfeição. Para cada
caça aos coelhos, temos os planos de bastidores, que mostram
os empregados assustando os bichos de suas tocas para facilitar
o divertimento dos patrões. Da mesma maneira, o teatrinho
de variedades burguesas se mistura aos dramas inventados das próprias
personagens (basta reparar a maneira como Christine reorienta
seu amor de forma a compensar cada novo golpe do destino), dobrando
uma parte sobre a outra, a ponto de que se torna impossível
distinguir a "cena dentro da cena" da cena que vemos,
de fato. A Regra do Jogo é uma crítica
de costumes que parece se tornar cada vez mais atual, uma vez
que o realismo do filme está justamente na denúncia
da encenação cotidiana que sustenta, diegeticamente,
o universo filmado. É um filme que se torna político
por cada beijo estar sempre no limite da encenação
escancarada de um beijo.
Novembro de 2010
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