A
Partida (Okuribito), de Yôjirô Takita (Japão, 2008) por
Fábio Andrade Partido
em dois
Na cena mais forte de A Partida,
o protagonista Daigo Kobayashi (Masahiro Motoki) observa salmões que tentam nadar
contra a corrente de um rio. Ao mesmo tempo em que vemos a luta desses peixes,
outros são arrastados, já mortos, pela correnteza. Num filme que gira em torno
de noções como vida, morte, arte, trabalho e predestinação, a cena ganha contornos
de alegoria. O simbolismo representativo é adotado sem a singularidade rebuscada
de um Tsai Ming-liang, e é incorporado com naturalidade ao cotidiano – mais próximo
do tratamento dado por Kiyoshi Kurosawa às medusas de seu Água Viva: estar
vivo é, necessariamente, nadar contra a corrente, brigar com a força das contingências,
mesmo que a morte seja o inevitável destino. É bastante
animador que, até aquele momento, Yôjirô Takita nade contra sua corrente particular
desviando o peso de seu tema (a rotina de um rapaz que, após a dissolução da orquestra
onde tocava violoncelo, passa a trabalhar preparando cadáveres antes de serem
cremados) com um humor sutil e respeitoso – como um Katsuhito Ishii light.
Em vez de seguir o caminho fácil do artista frustrado – que se apresenta logo
no início do filme – Takita parece, até aqui, acreditar que a arte é sim o sonho,
e o sonho é o oposto da morte; mas essa arte está ligada, sobretudo,
à idéia de trabalho. Embelezar os mortos é fazer pregnante o momento anterior
à morte, e ao artista cabe justamente conservar, quando não ampliar, esse momento
de plenitude – visão rigorosamente oposta à de, por exemplo, Stan Brakhage em
The Act Of Seeing With One's Own Eyes. Ao artista - em termos platônicos,
ao artífice – cabe se entregar plena e incondicionalmente à função de seu trabalho.
Nas mãos certas, embelezar os mortos pode ser atividade mais nobre do que tocar
violoncelo – ainda mais quando o sonho musical parece, na verdade, ser apenas
tributo a um desejo que não é seu, mas de seu pai. Assim como Daigo protagoniza
um ritual conservador (a própria idéia de reduzir a representação ao instante
pregnante), temos esse indício de libertação pessoal de um passado atrelado à
figura do pai, da infância, do passado. No entanto, essa
promessa de vida não dura, e logo vemos os recursos mais fortes da primeira metade
de A Partida se voltando contra a própria narrativa. Os salmões, diz uma
das personagens, nadam contra a corrente para morrer no lugar onde nasceram. Aos
poucos, a comédia leve se embaraça em questões traumáticas (a memória desfocada
do pai, que fugira com outra mulher quando Daigo era ainda criança) que Takita
só vislumbra desatar pela aproximação com o melodrama. Mas enquanto o diretor
alcançava algum frescor pelo humor, sua abordagem do melodrama é a mais convencional
possível. Essas convenções, porém, nunca configuram um estilo (algo que vemos
no trabalho de um Clint Eastwood, por exemplo) e sua fraqueza individual se esconde
na sombra do humor leve que nos levara ao filme. Esse contraste de gêneros produz
um estranho tom de deboche, onde o humor se projeta clandestinamente sobre o uso
das convenções, expondo-as, mesmo que sem intenção, em sua falta de substância.
O
simbolismo, que era fuga epifânica na cena dos peixes, desemboca em linhas de
roteiro que fazem, do alegórico, esquemático; e do delicado, frouxo. A pedra-carta
que aparece em um primeiro momento ganha uma longa explicação adiante; o pai desfocado
entra em foco no final; o protagonista faz as pazes com seu violoncelo, e ganha
um clipe não diegético tocando o instrumento (de criança; pequeno; patético) ao
ar livre, costuradas com os fios de nobreza de sua nova profissão. E se o riso
nunca ganhava o quadro na porção comédia, as lágrimas não só aparecem, como adiam
cada corte até pingarem do rosto de Daigo. A Partida muda de rumo, e se
deixa levar pela correnteza. Pois se antes víamos uma personagem se desligando
voluntariamente de sua memória patriarcal, é exatamente a figura do pai que o
filme trará de volta ao centro. Assim como Daigo escolhera o violoncelo por influência
paterna, ao fim ele usará também seu novo talento para lhe prestar reverência,
embelezando a lembrança que já não mais vive e que, pra ele, talvez só passe a
viver naquele momento. Yôjirô Takita parece se render ao pensamento corrente de
que cabe ao filme consolar suas personagens e, culpado, reparar as feridas que
ele mesmo abriu. É o caminho escolhido para passar pelo espectador sempre de longe,
e não provocar-lhe um arranhão sequer. Junho de 2009editoria@revistacinetica.com.br
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