Anticristo
(Antichrist), de Lars Von Trier (Dinamarca/Alemanha/França, 2009) por
Fábio Andrade Um
manco retorno
Para se chegar de fato a Anticristo,
é preciso atravessar uma espessa camada de fumaça que o separa do espectador.
Esse obstáculo não vem do filme, mas sim de todo o esforço midiático feito em
torno dele por Lars von Trier – mas também, e mais lamentavelmente, por parte
considerável da crítica de cinema mundial. Não é novidade alguma que Trier sempre
foi um marqueteiro além (e, em seus piores momentos, antes) de um diretor de cinema,
e que seu discurso sempre buscou embaralhar a recepção de seus filmes. Mas Anticristo
parece marcar o triste momento em que houve, também, um esforço de parte da crítica
– e não só da imprensa produtora de lides – em não travar qualquer relação com
os diversos procedimentos usados pelo diretor na construção do filme. Existe,
nesse ato, um texto político muito mais claro do que sua intenção, pois a recusa
sistematizada acaba servindo mais à polêmica do que ao cinema. Sim,
Anticristo é um filme. Em toda sua deformidade acidental, talvez seja o
filme mais íntegro de Lars von Trier desde Dançando no Escuro – o que é,
em si, mais uma questão de justeza do que de defesa. Em Ondas do Destino,
há uma cena em que Bess (Emily Watson) interrompe um sermão religioso onde se
pregava o amor à palavra de Deus: "Não se pode amar uma palavra. Só se pode
amar pessoas", ela dizia. Desde Dogville, Lars von Trier deixou de
fazer filmes sobre pessoas, e passou a fazer filmes sobre palavras. A metalinguagem
e a exposição auto-reflexiva atingiu tais níveis de epidermia que, por vezes,
neutralizavam qualquer engajamento possível com o objeto artístico. Esse cinismo
está presente tanto no joguete com Jorgen Leth em As Cinco Obstruções,
quanto na inocuidade dos auto-enquadramentos de O Grande Chefe. Em Anticristo,
não. Pois, passadas as questões não-artísticas (que, claro, influenciam a visão),
o filme marca o retorno da crença de Lars von Trier nas imagens. Os planos em
que o pênis de William Dafoe ejacula sangue, ou em que Charlotte Gainsbourg corta
o próprio clitoris, podem ser tudo, menos gratuitos. Existe, na iconografia de
Anticristo, um desejo de significação que é bastante claro, e reduzi-lo
a mero instrumento de marketing é julgá-lo pelos motivos errados. As fragilidades
de Anticristo são de outra ordem, e é preciso se relacionar com elas dentro
de suas intenções. Desde a primeiríssima sequência, é notória
a vontade de Trier em usar a câmera para produzir significados e construir um
universo simbólico para além do oportunismo dos choques. Do preto e branco ao
hiper-slow motion obsceno do pior de um Zack Snyder, o
diretor começa o filme criando um universo de moral fabular onde tudo é arquetípico
e, ao contrário do que diz a raposa na floresta, haverá pouquíssimo espaço para
o caos. Em dado momento, a personagem de Willem Dafoe sugere à esposa um exercício
de role playing; é esse o jogo fundamental do cinema de Trier e, nesse
sentido, Anticristo só se distancia de seus melhores momentos por ser absolutamente
manco. Cada ícone terá um significado muito claro dentro daquele universo, mas
o problema está menos na clareza, e mais na falta de habilidade de Lars von Trier
em construir essa realidade interna com maior inteireza. Mais do que um evento
não-cinematográfico, Anticristo é um filme perdido entre suas próprias
vontades. Daí que a tentativa mais fracassada de Anticristo
seja a de aproximação com o gênero. Pois Lars von Trier sempre teve uma das noções
de timing (ou falta de) mais esdrúxulas do cinema contemporâneo – algo
que rendia resultados interessantes em Os Idiotas ou Ondas do Destino,
mas que é fratura irremendável quando ele dialoga com gêneros que dependem do
tempo (aqui, o horror; em O Grande Chefe, a comédia). As
cenas de maior agonia física têm sentido alegórico tão claro (das analogias sexuais
ao peso que a mulher prende à perna do marido, por exemplo) que se apresentam
mais como engrenagens de significação do que como potência estética. Até mesmo
os momentos de fantasmagoria mais inquieta (as gélidas caminhadas em step printing)
são acompanhados por drones na banda de som – comentário que os aprisiona
em um registro de gênero castrador por sua banalidade. Lars von Trier, que sempre
foi tão econômico em seus tratamentos sonoros, escolhe o caminho mais redutor
para produzir sentidos que já estavam presentes nas imagens. Com isso, acaba os
afastando pela reiteração. Existem, porém, momentos
em que ele escolhe caminhos mais férteis, e é justamente por eles que Anticristo
restaura algum interesse pelos trabalhos vindouros do cineasta. Antes de irem
à floresta, a relação entre Willem Dafoe e Charlotte Gainsbourg é filmada com
um cuidado que há muito não surgia nos filmes de Trier. A combinação do formato
cinemascope com a supressão do plano/contra-plano é mais eloquente do que
toda a parte passada na floresta: em cada movimento que a câmera faz de um rosto
ao outro, nos tornamos conscientes da
distância que os separa – ela, com o rosto que salta, órfão, da escuridão; ele,
com seu entorno sempre visível. Esses momentos são fortes pois, embora Lars von
Trier sempre tenha se revelado como o senhor manipulador de seus universos (lembremos
da câmera subjetiva de Deus, no último plano de Ondas do Destino), a força
deles é proporcional a o quanto o diretor consegue fazer essas guias parecerem
orgânicas. Daí que os drones se tornem ainda mais pálidos se comparados
às bolotas de carvalho que caem sobre o telhado da casa da floresta – francamente
angustiantes pelo barulho que produzem, e por toda a carga simbólica que carregam
enquanto objeto. São detalhes pequenos que podem se diluir ao longo do filme,
mas que revelam uma preocupação – diria quase uma correção de rumos – que não
víamos no cinema de Lars von Trier há quase uma década. Setembro
de 2009editoria@revistacinetica.com.br
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