O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias,
de Cao Hamburger (Brasil, 2006)
por Eduardo Valente

Cinema narrativo, muito prazer

Ao contrário dos inúmeros filmes atuais que se centram sobre a família disfuncional, no novo filme de Cao Hamburger a disfunção é histórica e política: os pais de Mauro saem de cena porque precisam fugir da ditadura. Numa série improvável (mas bem colocada em cena) de acontecimentos, o menino acaba sozinho na cidade grande de São Paulo, sem parentes ou amigos que carregue consigo do seu passado. Trata-se, fica claro desde o começo, de uma história de reconstrução de uma identidade (o que passará tanto pelo caráter brasileiro – a Copa de 70, o futebol com os amigos; quanto pelo étnico – a comunidade judaica; quanto pelo de passagem de geração – a descoberta das mulheres, etc). Como se pode ver pela descrição acima, o filme de Cao Hamburger parece absolutamente formatado dentro de uma estrutura mais que conhecida de narrativas de infância no cinema – o que só torna tão mais impressionante o feito do diretor, equipe e elenco de injetar tamanho frescor e vida no filme.

Seu primeiro trunfo é uma filmagem “de época” que consegue solucionar bem exatamente tudo aquilo que dizíamos outro dia soar “errado” em 1972: nem a direção de arte nem os figurinos têm aquela sensação de “festa no brechó”. Seja pela austeridade do ambiente (a comunidade judaica, o bairro de classe média baixa do Bom Retiro), seja pela discrição e bom gosto dos realizadores, o filme nos planta fortemente em 1970 sem que precisemos receber pauladas na cabeça que nos lembrem disso a cada entrada de cena. O outro ponto é a capacidade de filmar externas com credibilidade, sem parecer desfile de figurantes ou de carros de época. Quando se é preciso ir para fora, o filme vai sem medo do plano geral, mas também sem exageros auto-centrados; quando é pedido um registro intimista ele o faz – em nenhum dos casos se sente aquela contrição da câmera, como se qualquer movimento para um lado revelasse os signos da atualidade do cenário da cidade. Acreditamos, em suma, no 1970 do filme, ele não é uma questão para nós – por isso podemos nos concentrar no que importa, os personagens. Claro que até aqui falamos apenas do sucesso da realização em seus aspectos mais práticos (dos quais poderíamos citar ainda a montagem, a fotografia e a música original, precisas) – mas convém notar como estes rudimentos são essenciais, ainda mais num cinema que deseja uma alta comunicabilidade com o público.

Mas, é claro que não é esse o único nem o principal trunfo do filme. Hamburger já havia demonstrado no ótimo Castelo Rá-Tim-Bum que sua força maior é unir a capacidade da articulação narrativa com um diferencial de atenção ao personagem, ao ator, ao ser humano dentro do espaço que ocupa. Assim é que os filmes resultam muito parecidos, aliás: em ambos existe o ambiente da casa, com aspectos um tanto fantásticos (o castelo em um, a casa do avô falecido em outro), e a tensão constante entre o ambiente desta e o exterior – acima de tudo, a necessidade de conformar um e outro, de aprender a viver na casa e no mundo ao mesmo tempo. E, em ambos os filmes, pouco se passa de fato em termos de trama, sem que o filme precise fazer disso um “ponto de força” (um elogio excessivo da contemplação). São filmes de climas, de trocas, de encontros, de confrontos entre os seus personagens, que tiram seu sentido justamente deste acúmulo de experiências que é o que molda a passagem da infância para a adolescência. E, neste ponto, Hamburger conta com um protagonista impressionante, que consegue passar nos seus incríveis olhos, toda sua apreensão do mundo. Apreensão que testemunhamos muitas vezes de maneira indireta, com os constantes reflexos em janelas e TVs que nos mostram o olhar do menino e o que ele vê/experimenta, ao mesmo tempo, numa exemplarmente discreta superposição entre a linguagem do filme e o seu protagonista.

A partir de todos estes sucessos é que o filme consegue driblar sua última armadilha: nos fazer acreditar na força desta micronarrativa individual de passagem, dentro do contexto político da ditadura. A forma como Cao Hamburger articula os dois ambientes (pessoal e sócio-político) é ao mesmo tempo simples e profundamente significativa, provando que não há problema em não se fazer “filme político” sobre o período (sempre o que ouvimos como justificativa para críticas a filmes do período, como o recente Sonhos e Desejos), apenas há problema em se chanchadear a vida (pelo menos sem intenção expressa de fazê-lo), seja em que época o filme se passe. Os personagens efetivamente políticos do filme (os pais, o personagem de Caio Blat) não precisam fazer discursos ou viver de maneira unidimensional (a torcida deste último no jogo entre Brasil e Tchecoslováquia resolve a questão de maneira leve e ao mesmo tempo contundente). Eles podem simplesmente viver, e fazer disso uma política – como aliás se fecha lindamente o filme em torno, primeiro, da ausência em cena da comemoração pela vitória na Copa (a volta do menino para casa nas ruas vazias é belíssima), e depois com a volta da mãe, sem o pai. Ausências estruturantes de um discurso autenticamente político, justamente porque humano.


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