in loco - cobertura dos festivais
Ano Bissexto (Año Bisiesto), de Michael Rowe (México,
2010)
por Fábio Andrade
Problemas explícitos
Ano Bissexto, que rendeu a Michael Rowe a Camera D'Or
no último Festival de Cannes, é de certa maneira
fadado a se perder nos ruídos de compreensão. O
filme, porém, não quer diferente e, para o bem e
para o mal, sua capacidade de choque é valor agregado como
princípio: trata-se de um conto caseiro em pálido
cinemascope, no qual a solidão da protagonista Laura (Monica
del Carmen) será severamente marcada por sexo, sadomasoquismo,
porradas e mijo na cara. Se mesmo um Império dos Sentidos,
de Nagisa Oshima, carrega consigo a marca da história minúscula
que se interessa mais por maneiras inusitadas de se usar um ovo
como objeto de cena do que pela precisão absolutamente
maiúscula com que Oshima encena aquela tragédia
específica, é inevitável que uma estréia
como Ano Bissexto carregue a consciência de que
sua herança - positiva ou não - será de natureza
semelhante. Nenhum grafismo é motivado por pudor, e Michael
Rowe busca sempre o gráfico.
Mas apesar de as cenas de sexo e violência serem consideravelmente
explícitas - e nisso há uma precariedade de luz
e cena que ajuda bastante o filme a se colocar mais próximo
de um snuff movie do que de um Jogos Mortais
- Michael Rowe é esperto o suficiente para se livrar do
peso dessa escolha e deixá-lo a cargo do espectador. Pois,
já no terço final de projeção, o que
parecia uma sessão de tortura e submissão é
rapidamente transformado em um ato de entrega voluntário
e sem culpa. Se nos enojamos ou nos revoltamos com as situações
às quais Laura é submetida, o nojo e revolta são
exclusivamente nossos: é ela quem se submete. Mais do que
isso, quer ir mais longe: pede explicitamente ao amante que a
corte em retalhos, que a faça sangrar até a morte,
para que ele depois possa fazer sexo com seu cadáver. Não
há, portanto, perversão possível quando ela
é transparente e voluntária. Se há repulsa,
é apenas uma manifestação da castração
que vem da platéia para a tela. Uma vez que se acredite
que Michael Rowe é um sádico oportunista, a repulsa
moral seria a maneira mais rápida de livrá-lo de
ambos os adjetivos.
Isso não impede, porém, que a dedicação
gráfica de Rowe gere problemas de outra ordem. Pois assim
como toda cena de sexo e "tortura" será realizada
sem rodeios ou truques de ocultamento, Michael Rowe será
igualmente explícito com toda a base moral, social e psicológica
que fundamenta aquela situação. À
vida libertina de Laura, teremos como contraponto cenas em que
ela se masturba à janela, vendo um casal de namorados bem
comportado que assiste televisão.Se há uma foto
de um homem ao lado da cama de Laura - em um porta-retrato que
estará sempre convenientemente virado na direção
da câmera, mesmo quando isso não faz qualquer sentido
em um desenho realista do espaço - ela rapidamente será
explicado como o pai morto que norteia a devassidão da
protagonista, e explica o título do filme (que, por sua
vez, será relembrado até o final com várias
cenas de um calendário na parede, marcado de caneta vermelha
para que não esqueçamos). Para todas as hematomas,
e todas as trepadas pouco promissoras (há uma, inclusive,
com direito a gran finale que não refuta a parlapatice:
o sujeito senta na cama e liga para a esposa), há uma cena
de Laura lendo A Arte de Amar, de Erich Fromm.
De tudo que há de explícito em Ano Bissexto, o sexo e a violência são os menores dos problemas. Ao contrário, a frontalidade com que o filme confrontará seus supostos tabus é exatamente aquilo que ajuda a camuflar suas verdadeiras fragilidades: uma relação de causa e efeito nunca acima do banal; um suposto subtexto racial tão expressivo quanto o de qualquer filme que põe pessoas de raças diferentes a contracenar; uma negação absoluta de qualquer lacuna ou gratuidade que parece tão risível quanto as realizadas, como piada, por Robert Rodriguez em Machete (se vemos um close de um saca-rolhas, é garantia que ele será fincado na testa de alguém poucos minutos depois). Antes mesmo de todas as complicações políticas e morais que suas falsas questões trazem a cabo, Ano Bissexto ofende no único ponto que é de todo imperdoável: é simplesmente mau cinema.
Outubro de 2010
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