Angel
(idem), de François Ozon (Inglaterra/Bélgica/França, 2007)
por Cléber Eduardo Pura
demonstração de auto-consciência?
Pelo uso da
música empenhada em nos introduzir em um registro de ficção assumida como ficção
e pelas atuações nas quais vemos mais as atuações e menos os personagens, somos,
em Angel, de François Ozon, apresentados logo no começo a um universo cuja
meta é se referir a universos de outros momentos históricos, não somente porque
o universo diegético diz respeito aos primeiros anos do século XX na Inglaterra,
mas principalmente porque há uma intenção nesse universo de se afirmar com um
senso de cinema à moda antiga. Qual a razão de um cineasta francês, François Ozon,
no século XXI, optar por essa moda antiga, em língua inglesa, como vemos em Angel?
Os filmes anteriores de Ozon nos garantem algumas suposições,
apesar de serem a princípio tão diferentes entre si. Nessa diferença que marca
o conjunto, que não cola de primeira Sitcom e Os Amantes Criminais,
Gotas de Água em Pedras Escaldantes e Sob a Areia, 8 Mulheres
e Swimming Pool, na verdade há uma constância: a presença de uma inteligência
na maneira de lidar com as situações e entendê-las como parte de um processo histórico
do cinema, fazendo o possível para encontrar seu diálogo com vertentes escolhidas
como vínculo. Em suma, Ozon, como nos garante o conjunto de sua obra, não é bobo.
Nem inocente. Cada imagem dele carrega uma intenção, ou uma intuição possível
nos limites de um projeto estético, uma relação com o que veio antes dele. Nada
é acidental, ou, ao menos, assim aparenta. Se essa inteligência não gerou nenhuma
obra prima até o momento, apesar da força de alguns filmes (Sob a Areia)
ou de partes de vários, pelo menos nos faz crer em uma consciência de escolhas. Em
Angel, como o diretor se relaciona com esses códigos já tornados clássicos
e tradicionais, tendo como matéria prima a adaptação de um romance de Elizabeth
Taylor (a escritora, não a atriz), cuja publicação data dos anos 50, ainda uma
época de ouro do melodrama hollywoodiano? Essa matéria prima, salienta-se,
tem uma dramaturgia chavão, que acompanha os altos e baixos de uma mocinha caipira
e envergonhada da origem pobre, Angel Deverell (Romola Garai), que aspira e obtém
sucesso em seu projeto literário/comercial de best sellers suspirantes,
mas obtém junto com o êxito as feridas de uma vida afetiva romanceada. Tanto
o sucesso com os livros quanto as feridas são motivados por fantasias juvenis,
por uma capacidade e um limite de se reinventar o mundo para melhor se encontrar
nele. O mundo de Angel é uma mentira, uma ilusão, com a qual ela tem de lidar.
Consideremos a filmografia de Ozon para entender não apenas Angel, a protagonista,
mas também um coadjuvante valorizado pela narrativa, seu marido por conveniência
Esmé (Michael Fassbender), um pintor de mal com a vida e com as cores, que se
aproveita do patrocínio de Angel, mas não corresponde a seu amor – atitude essa
vivida não sem conflitos e não sem os efeitos da I Guerra. Como Angel e Esmé,
personagem principal e principal coadjuvante, se situam no planeta Ozon? Angel
é uma figura de ambição e carência, que deseja menos riqueza e mais reconhecimento,
para saciar sua sede de superioridade e poder. Ela se sente superior já quando
pé-rapada e apenas viabiliza a transformação de sentimento em realizações. É uma
vencedora maiúscula, que arrota sua vitória com vulgaridade e excesso, mas não
tem poder para controlar os sentimentos alheios, tampouco o curso do mundo e de
seu entorno. Talvez não haja equivalente, salvo algum esquecimento, dessa ascensão
nos filmes de Ozon, tampouco de uma transformação tão radical, que pauta o percurso
da protagonista. As jornadas de sofrimento e com reviravoltas, à moda de Charles
Dickens, nunca estiveram no centro de sua obra. Elas costumam ser mais condensadas
no tempo dramático, menos conduzidas pela quantidade de acontecimentos, mais pela
observação desses acontecimentos. Talvez a figura mais ozoniana,
portanto, seja o coadjuvante Esmé, artista sempre em crise, fracassado, em descompasso
com a moda da arte de seu momento histórico, que caminha para um beco sem saída,
mas ainda com a dignidade de decidir pela palavra final, por sua última expressão
de interioridade. Se Angel é só performance, só o que fala, só como nos dá a ser
vista, Esmé é algo além das aparências e das palavras, pois nos omite algo, carrega
um enigma, tem o mistério dos seres incapazes de se expressarem sem filtros da
linguagem. Esse talvez seja um dos traços característicos dos personagens de Ozon:
uma crise nunca inteiramente desnudada. As relações familiares
ou de afetos escolhidos, nos filmes de Ozon, carregam um tanto de segredos e mentiras.
Sempre os personagens omitem informações uns dos outros para, nas desregulações,
não ameaçarem a ordem reguladora das relações subvertidas. Mas não importa ao
diretor apenas colecionar personagens com problemas em suas redes afetivas, com
segredos a esconder, com dificuldade de se mostrarem e serem aceitos como são.
Ozon lida quase sempre, como questão de seus filmes, com a organização narrativa
e com os códigos. Há um desafio na relação com o teatro
que é lançado para ser encarado em Gotas de Água com Pedras Escaldantes,
no sentido de o filme assumir sem resignação sua natureza de dramaturgia para
palco. 8 Mulheres, Swimming Pool e 5x2 são filmes em que,
se os sentimentos entre os personagens têm sua importância, nada é mais importante
que o jogo narrativo do diretor. Ozon filma como um estudioso das estruturas narrativas
e das convenções em geral. Seu teto é limitado justamente porque seu cinema culto
impede-o de atravessar ou superar a cultura e erudição para produzir um tecido
cinematográfico com mais verdade e menos pose de cinema com espelhos para se ver. Ozon
dá a impressão de estar filmando um material alheio, que não lhe diz respeito
diretamente, mas é estratégico para ele exercer sua cultura. Temos
então um filme sem personagens, porque, acima de tudo, expõe seus procedimentos
dramáticos, embora pareça disposto a estabelecer o drama. Será? Se pensarmos pela
perspectiva do melodrama clássico, que tinha como desafio conciliar operações
de excessos com uma neutralização dessas operações, de modo a se estabelecer uma
crença do espectador nas situações mostradas, Angel apresenta ruídos no
desafio da neutralização. Não está claro se deseja expor ou neutralizar os artifícios
excessivos, se procura o distanciamento ou a adesão, ou, se justamente, uma soma
de adesão e distanciamento. Esse é seu meio-termo, ou sua ambigüidade, que, a
rigor, não é um valor em si. Por que? Porque o efeito dessa operação é uma xaropada
dramatúrgica, que, se ostenta diploma de estudante dos gêneros narrativos, continua
sendo uma xaropada. O percurso da escritora pé-rapada, arrogante, ambiciosa e
carente, que escreve e vende o que escreve sem ler coisa alguma, que torna-se
célebre sem formação ou conhecimento, que vive na e de imaginação, é irrelevante
para Ozon. Ele parece somente interessado em mostrar como se relaciona com consciência
com todos os seus elementos. É um cineasta, ainda, apenas esforçado e nem sempre
com êxito, em evidenciar inteligência e cultura. Março
de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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