in loco - cobertura dos festivais

Andando em Má Companhia (Bu fa fen zi),
de Han Jie (China/França, 2006)
por Eduardo Valente

Clonagem com defeito

Foi-se o tempo em que um cineasta levava décadas realizando filmes até ter sua marca reconhecida e passar a exercer influência no cinema mundial. Hoje, com o cada vez maior e mais abrangente “circuito de arte” pelo mundo (não só nas salas comerciais, mas principalmente nos festivais), os “autores” surgem com velocidade enorme – e com a mesma velocidade passam a ter seus “diluidores”. Se nos anos 90 nenhum cineasta atingiu este ponto tão rápido quanto Quentin Tarantino (e a quantidade de diluidores que surgiram ajuda a entender inclusive porque ele filmou pouco a partir de Pulp Fiction), os anos 2000 já nos dão alguns exemplos curiosos, como a epidemia de “filmes-Dardenne” que toma conta do mundo ou a rapidez inédita com que Carlos Reygadas se tornou um “nome” (um filme: Japón) e deu frutos em um “assecla” (Amat Escalante, de Sangre). Pois agora nos chega o primeiro filme que deixa claro o novo nome a ser “clonado” no circuito dos festivais: o do chinês Jia Zhang-ke, que inclusive é produtor deste Andando em Má Companhia (como Reygadas era de Sangre). Só que, a julgar por este primeiro trabalho de Han Jie, quem está andando em má companhia é o próprio Jia Zhang-Ke – embora o prêmio que o filme ganhou em Roterdã deixa ver que “copiar e colar” estilos engana muita gente importante (não custa lembrar que Sangre também foi premiado pela crítica internacional em Cannes).

A marca de Jia está presente no filme de Han Jie desde o começo: a paisagem da China contemporânea fora dos grandes centros, onde o progresso econômico dos últimos anos se mistura com uma série de resquícios dos tempos puramente comunistas anteriores, tendo como resultado uma sociedade que parece o tempo todo montada sobre um frágil tripé estrutural. Mais do que isso, porém, a marca realmente inconfundível é o foco essencialmente voltado para os personagens jovens, que obviamente são os que mais se encaixam naqueles diretamente afetados pelas circunstâncias atuais. Some-se a isso a filmagem “clandestina”, aqui em digital como nos últimos filmes de Jia (os primeiros eram em 16mm), que procuram revelar uma série de facetas “escondidas” das contradições chinesas. Final das semelhanças, começo das diferenças.

Para início de conversa, a questão do estilo: o olhar de Jia é marcante pela construção de planos cuja movimentação interna é extremamente pensada para, junto com a movimentação de câmera, revelar o máximo de elementos e de interações entre personagens, ambiente e dispositivo cinematográfico, resultando em imagens sempre de uma beleza e significação impressionantes. Já a câmera de Han Jie está mais perto da “digital-Dogma”, com seus cortes abruptos e constantes e seu estatuto “câmera na mão” constantemente afirmado e reafirmado. Em segundo lugar, o tratamento dos personagens: se todos os filmes de Jia são filmes que tratam da transformação da China nas últimas décadas, seus personagens possuem sempre autonomia para transitar dentro deste quadro como figuras de vida própria. Han Jie vai por outro caminho: o dos personagens-sintoma, onde nada na trama que os envolve tem verdadeira autonomia, e cada cena serve somente para reiterar o mesmo ponto inicial sobre a alienação e a falta de perspectivas para os personagens. Ou seja: Han Jie é igual a Jia Zhang-Ke + Larry Clark/Gregg Araki. Mistura indigesta.

O resultado é um filme absolutamente óbvio e transparente, cuja mensagem é tão cristalina e repetitiva, que aos vinte minutos de filme sentimos que já não precisamos ver mais nada. O que se segue é um coquetel que parece especialmente interessado em somar, da maneira mais arbitrária possível, uma quantidade de situações-limite com o intento de chamar a atenção para si como “filme-denúncia” de um determinado estado da juventude chinesa (batem ponto: estupro, espancamento, roubo, assassinato, prostituição, jogatina, acidente de trabalho, corrupção etc). Os únicos elementos que parecem desnecessários na equação do filme são os personagens e, em última instância, o espectador – o sentido do filme se dá antes e apesar deles. Tanto assim que, depois do personagem principal perambular pela meia hora final por situações absolutamente reiterativas do que vimos no filme, o diretor decide arbitrariamente terminar a história num mesmo ponto anterior – uma vez que seria impossível estabelecer uma gradação dramática.

Por tudo isso, fica o aviso de sempre: chequem bem a embalagem do produto comprado. Senão, se leva gato por lebre – e Jia Zhang-Ke não surge toda hora por aí...


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