O Amor Segundo B. Schianberg,
de Beto Brant (Brasil, 2009)
por Paulo Santos Lima

Expondo o equívoco

Exposição. No dicionário, ação de declarar, de se manifestar. Palavra também sinônima de fala, elóquio, explicação, exegese, apresentação. São termos, estes, com os quais lida O Amor Segundo B. Schianberg, projeto que, já em sua gênese, teve como norte a exposição: a de mostrar, como num laboratório, o avanço relacional do encontro entre homem e mulher. E que enquadrou-se ao formato da TV sem desrespeitar a regra máxima desse meio, que é jamais descambar para as omissões. Agora, ao levar este seu trabalho à projeção da sala de cinema, Beto Brant entrega-o, nu, de bandeja ao mundo. Na tela grande, é mostrá-lo pornograficamente, expô-lo em pêlo, apontar a natureza dura do digital, ampliando um certo estranhamento que o meio numérico já provocava no formato diminuto da televisão.

Por outro lado, a transposição causa um efeito inverso: uma desfiguração – uma “des-figuração”, “figuração des”, uma outra figuração. O que não é nada mal como exercício de criação audiovisual, mas é bastante nocivo ao filme, uma vez que parece não existir mais uma correspondência entre forma e enunciado; o dispositivo agora salta aos olhos, desfaz-se do casamento que tinha com o corpo do filme, deixa de ser um meio (expressivo) para se tornar a questão. Isso, na prática, significa tornar o filme ainda menos acessível que na TV, já que o som cavernoso e a imagem fantasmada contribuem para um total distanciamento, uma barreira mesmo. Uma contradição, pois expor, aqui, seria então esconder? Nem tanto, talvez o resultado disso é como amarrar os membros de um sujeito em quatro cavalos: o corpo estica à ruptura, e as vísceras aparecem. O que surge é um material empenado, com diálogos pouco consistentes, aquilo que poderia ser puramente banal tentando um vulto “cabeça” e significativo, uma performance do casal central demais, acentuada para os dispositivos utilizados para registrá-los – ou, resumindo, uma encenação elaborada demais para a discussão que sai da experiência.

Antes de nos atermos mais ao filme, vale destacar que Brant enxugou imagens e algumas explicações introdutórias que havia na série. Isso faz com que, no filme, a videoartista Gala (Marina Previato) e o ator de teatro Felix (Gustavo Machado) nos cheguem devidamente instalados na cena, sem qualquer norteamento, e é um tanto desconcertante, assim, que a sinopse (que bem poderia ser chamada de teoria, projeto, experiência), esse ente tão externo ao filme, seja o que há de mais sólido como projeto. Se a experiência é algo externo ao filme, o que seria o filme propriamente? Ou, qual seria a experiência do longa O Amor Segundo B. Schianberg? A versão cinematográfica parece ser mais um experimento de Beto Brant para ampliar a atividade da obra no mundo. Ampliar sua intervenção. Isso é um gesto magnífico, inclusive porque é prova de um certo desprendimento com a cria, é lançá-la às esquinas e ruas da vida. Mas o resultado é como se Beto assassinasse seu filho, apresentando suas partes ao público (por mais que, obviamente, não tenha sido esta a sua intenção, pelo contrário). O fato é que, na tela grande, com acesso dificultado pelo som e pela imagem deformados, o que há a ser visto é pouco. O banal, esta maravilha moderna, necessitaria de uma limpidez de apresentação para que as nuances e dobras fossem detectadas. O que há é o posto: falas cartelares, os corpos de Marina e Gustavo completamente duros e distantes um com o outro.

No impressionante Crime Delicado, não havia o coloquial, o naturalista, mas na impostação teórica e significativa dos personagens e de suas falas, havia uma densidade elevada, resultando numa grande discussão sobre o distanciamento e a imersão, entre o recuo e a aceitação da experiência, envolvendo um crítico de teatro aquartelado em sua sabedoria teórica. Um filme cujos elementos dispunham-se às claras. No magnífico Cão sem Dono, o melhor filme de Brant, era do coloquial que se fazia a estética: encenação, a dramaturgia, a forma. E a discussão é a mesma do outro filme, ou seja, Ciro, o protagonista, está dormente ao que lhe rodeia, inerte ao mundo. Será numa série de coloquialidades, de papos com pai, café da manhã, um zelador figuraça, que o discurso virá à tela. A comparação é crucial. Enquanto esses dois longas trabalhavam com a superfície das coisas, dos corpos, dos objetos, e com falas também bastante claras, O Amor Segundo B. Schianberg trabalha com a opacidade estilística. Há, no meio disso tudo, uma contradição, na medida que O Amor... é todo exposição, é todo pornográfico  na performance, e os dois outros filmes mantêm enigmáticos seus personagens e seus gestos e ações. Pode-se dizer, para ilustrar, que Cão sem Dono está para o cinema do Gus Van Sant de Elefante e Last Days ao passo que O Amor Segundo B. Schianberg está para um desses indies genéricos exibidos em Sundance.

É evidente e bastante interessante a agressividade da imagem de O Amor..., mas isso não o torna mais radical. Pelo contrário, ao destripar seu corpo, fica claro uma certa adequação narrativa que só havia antes de O Invasor. O filme chega, na sua conclusão, a uma obviedade bastante extraterrestre na obra de Brant, que é das mais sólidas e elevadas realizadas no cinema brasileiro dos últimos anos: após assistirmos a Gala usando Felix no seu trabalho videoartístico, embaralhando o envolvimento carnal com o funcional, veremos o trabalho acabado, um vídeo que ilustra didaticamente o tal nascimento do amor. Falar desse trecho, que aos meus olhos me parece bastante simplório, exigiria um conhecimento das artes plásticas que me escapa. O que aparece na tela, contudo, é uma grande abertura para se discutir quais conceitos movem as artes plásticas hoje no Brasil – e é curioso como o filme que acaba remetendo à situação das artes plásticas no país, onde as fórmulas de opacidade convencionadas cooperam justamente para a veiculação espraiada dessas obras, que transitam no veio promocional, são a materialidade vertida para o apagamento, como pôr um quadro ou escultura num blog. Uma discussão polêmica, e mais abissal que a do cinema.

O fato é que O Amor Segundo B. Schianberg conclui-se completamente dentro da convenção, mas daquela convenção pasteurizada do que há de pior da TV – a conclusão reiterativa. Diante disso, a atitude de Beto Brant levar este seu experimento televisivo à exposição cinematográfica é de uma tamanha postura. A criação é feita de vôos e aterrissagens forçadas, estolagens implacáveis, e Brant, certamente, vai seguindo às alturas, já há algum tempo.

Outubro de 2009

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