in loco - cobertura dos festivais
Uma História de Amor e Fúria,
de Luiz Bolognesi (Brasil, 2012)
por Pedro Henrique Ferreira
Da inconsciência
Em princípio, as intenções artísticas
e políticas de História de Amor e Fúria
parecem estar indubitavelmente expressas nas várias frases
de efeito que nos coloca a narração em off
do personagem principal, um espírito que reencarna em diversos
momentos da história do Brasil. São lemas didáticos
como “viver sem conhecer o passado é andar no escuro”
ou “meus heróis não viraram estátuas,
morreram lutando contra aqueles que viraram”, ecoando na
voz murmurada de Selton Mello. A forma grave como o ator as pronuncia
traz à mente a sociologia ríspida dos offs
do Capitão Nascimento da série Tropa de Elite:
não expressam sentimentos ou reflexões íntimas,
representam uma grande consciência em terceira pessoa, uma
espécie de voz ex machina do filme expondo suas
teses pela consciência do personagem.
Nos
três episódios de revoluções que compõem
o drama épico – um conflito indígena dos tupinambá
em 1560; um levante popular no século XIX; o movimento
contra a ditadura– assistimos se reforçar cada vez
mais estas duas assertivas, que instituem bases para uma revolução
popular sob um olhar dialético do conflito de classes.
Mas é preciso esperar
até o último episódio para notar realmente
o tom de urgência que Uma História de Amor e
Fúria põe na mesa. Na projeção
apocalíptica de um Rio de Janeiro em 2096, dominado por
milícias e empresas que deixam as camadas inferiores da
população largadas à miséria, é
possível se perceber o quanto, através do passado
e do futuro, Luiz Bolognesi quer realmente chamar atenção
para riscos políticos que são da ordem do presente.
Mas
é justamente neste episódio que ficará clara
a contradição entre o saber e o agir: o personagem
central, onisciente de todos os seis séculos de história
e com definições precisas de como roda sua engrenagem,
se tornou um desiludido de classe média-alta, cansado de
lutar contra a elite. Por outro lado, a mulher que ele ama, Janaína
(Camila Pitanga), que não lembra de nenhuma de suas vidas
passadas e, quando comparada a ele, simboliza a absoluta inconsciência...
bem, esta continua a insistir em lutar! Assim, Uma História
de Amor e Fúria versa sobre a inconsciência
necessária para a luta (contra uma elite dominante), o
tal “amor e fúria” que poderia muito bem ser
vertido em “som e fúria”, quando a consciência
histórica só leva à paralisia e é
menos fértil que a inconsciência, isto é,
que a urgência dos sentimentos.
Há uma curiosa resistência na dinâmica dos
personagens aos lemas que o diretor injeta pela palavra. Ou melhor,
há um movimento hegeliano no qual o conceito é
contradito pela prática, a palavra é negada pelo
ato, a tese enfrentada pela antítese. Os offs
que falam de um não-viver sem o conhecimento do passado
acabam por ser provados o contrário pela maneira como os
dois personagens se posicionam no mundo. Temos aí, talvez,
um leve indício de um problema pesado. Uma História
de Amor e Fúria não “dá a conhecer”
a história do Brasil, da mesma maneira que Tropa de
Elite não “dá a conhecer” a política
atual. O longa-metragem de Luiz Bolognesi utiliza a história
como demonstração de uma posição ideológica,
como modo de justificá-la. E esta posição
ideológica antecede a História (que se tivesse uma
brecha no longa-metragem, provavelmente lutaria contra ela). Não
é à toa que o longa-metragem precisa inventar um
futuro tanto quanto inventar uma origem, inventar o mal para fazer
a passagem de um conflito cerebral para um conflito real, inventar
o mito para mobilizar as massas.
É
um procedimento maquiavélico, autor que ironicamente é
citado em um dos episódios: os fins justificam os meios.
Portanto, poderíamos muito bem substituir a citação
que abre Uma História de Amor e Fúria para
“viver sem ideologia é andar no escuro”. Ora,
o problema não é apenas a ideologia caduca reminiscente
da década de 1960 que, quando não tem mais a ditadura
como alvo, tem de inventar outro inimigo absoluto - a “elite”,
o grande demônio do século, uma inteligência
organizada em vez de uma classe social, um fantasma contra o qual
pegar em armas seria mais do que justo. O que realmente está
em jogo é aquilo que certos cineastas às vezes parecem
esquecer ou fingir que nunca souberam, isto é, que um filme
é ainda e sempre um filme.
Esquecer isto facilita, risca alguns problemas a priori. Mas não
muda o fato de que a arte não faz política por odes
românticas à revolução ou por panfletos/panegíricos.
No final das contas, o cuidadoso trabalho de animação,
que nos remete esteticamente a composições e traços
de HQs orientais, acaba um pouco ofuscado pela vontade excessiva
de persuasão. O resultado é uma trama de tom didático
com a qual o espectador só pode se envolver se, por princípio,
concordar. Almejando ensinar, faz desaprender. Subjugada à
convicção ideológica que Uma História
de Amor e Fúria afirma tão insistentemente,
a trama perde a História, perde o Amor e perde também
a Fúria. Coisas que fazem o Cinema também se perder.
Tal qual o seu personagem principal, por um excesso de consciência
do ponto onde quer chegar, Uma História de Amor e Fúria
estanca, cansado de não sair do lugar.
Outubro de 2012
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