Amor?, de João
Jardim (Brasil, 2010)
por Fábio Andrade
Jogo
sem cena
Amor? é um documentário reencenado,
no qual atores recontam histórias, coletadas para o filme,
de pessoas que tiveram relações amorosas que elas
consideravam violentas e destrutivas. É inevitável
que tal procedimento traga à lembrança Jogo de
Cena, de Eduardo Coutinho, e a comparação é
ponto justo para se medir as diferenças entre os filmes.
Pois o que fazia de Jogo de Cena uma obra tão instigante
era, entre outras coisas, a maneira como a construção
se revelava pela desconstrução: se ficamos impressionados
com o depoimento interpretado por Andréa Beltrão,
é revelador que no momento seguinte Coutinho converse com
ela e pergunte onde se deram as conexões emocionais da atriz
com o texto, e em que momento a encenação declarada
conseguia entrar em contato com a "verdade" do depoimento.
Como sempre, o interesse de Coutinho se concentrava na potência
de um encontro entre duas sensibilidades.
Em
Amor?, ao contrário, não há espaço
para nada disso. Temos apenas atores reencenando depoimentos que
o filme diz serem verdadeiros, em certos momentos usando letreiros
que atestem a veracidade da encenação: foi exatamente
assim que aconteceu no depoimento original. O que o filme ganha,
portanto, com a encenação? Nada, absolutamente nada.
Não há motivo para se recorrer a atores quando o que
está em jogo é apenas a força do que é
contado, e não ajuda que a justificativa dada pelo filme
faça pouco sentido (e que suas questões éticas
de exposição de terceiros já tenham sido resolvidas
mesmo pelo pior telejornalismo). Ao contrário, trocando depoentes
por atores perde-se apenas a força do corpo em si, da conexão
entre as situações contadas e o rosto que as viveu.
Não há troca possível entre o ator e o texto
quando o que está em jogo é a verossimilhança,
e Amor? se esconde atrás de procedimentos de linguagem
aparentemente sofisticados na esperança de que um filme de
pretensões absolutamente rasteiras e um moralismo de falsas
questões (existe amor sem violência?) se potencialize
como um produto artístico de alguma relevância.
Mas o que vemos na monotonia de Amor? é exatamente
o contrário: em seu afã pela aparência de sofisticação,
os depoimentos no filme têm menos força do que as experiências
compartilhadas no final de cada episódio das novelas de Manoel
Carlos. No fim das contas, o que João Jardim se esforça
é fazer de histórias violentas algo palatável
para o público do GNT (canal produtor do filme) - assim como
uma cena de nú de Eduardo Moscóvis ganha uma levantada
de perna providencial no momento exato, naquela velha especialidade
do mau cinema (tão bem aproveitada por sujeitos como Paul
Verhoeven e Brian De Palma) que é o nú frontal lateral.
Amor? é cheio dessas dissimulações
aberrantes - de "Carinhoso" tocada ao sax a cenas em super
8 que façam toda aquela suposta dor parecer mais "poética"
- que resultam em sua maior ironia: com a desculpa de preservar
as pessoas, seus joguetes de linguagem e encenação
são os sintomas de maior desrespeito para com as histórias
de vida compartilhada por suas personagens. A maneira solene e palatável
que o filme usa para tentar dourar esse desrespeito só reforça
o quão falsa é a sua ingenuidade.
Novembro de 2010
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