nas locadoras
Amei um Bicheiro,
de Jorge Ileli e Paulo Vanderley (Brasil, 1952)
por Cléber Eduardo

Do cinema de gênero ao realismo carioca

Em sua crítica sobre Amei um Bicheiro, publicada sob o título “A Influência Bem Assimilada”, no Correio da Manhã, em 1953, Moniz Vianna julga o estreante Jorge Ileli, que co-dirigiu o filme com Paulo Vanderley, uma exceção histórica e estética. No tocante à linguagem cinematográfica, o único equivalente a Ileli, segundo o crítico, é seu contemporâneo Lima Barreto, que meses antes havia lançado internacionalmente O Cangaceiro. No caso de Moniz Vianna, linguagem cinematográfica significa encadeamento narrativo, de plano para plano, de seqüência para seqüência – ou seja, toda a operação para que não lembremos, por conta de um corte torto por exemplo, que estamos vendo uma encenação. Ileli e Barreto seriam, para Moniz Vianna, logo em seus primeiros passos, o futuro do “narrativo brasileiro”, capazes de nos fazer acreditar, com suas escolhas de ângulos e de encadeamento, nos acontecimentos da tela, sem sobressaltos gerados por amadorismos. Não se pode perder de vista que, no fim dos anos 50, nenhum filme era julgado em si, mas em função da história do cinema brasileiro, em geral restrita a Mario Peixoto e Humberto Mauro para a maioria dos críticos.

Se a imagem de O Cangaceiro era, naquele momento, a da autenticidade brasileira, mas de um universo historicamente ultrapassado, a imagem de Ileli, sem negar o modelo do thriller americano e francês (John Huston, Jules Dassin), era já urbana e contemporânea, situando-se no Rio de “dentro”: longe da princesinha do mar, em um ambiente de atividades financeiras ilegais, que, no entanto, reproduzem a hierarquia do capitalismo oficial. É no ambiente do crime organizado, em torno do jogo, que a contemporaneidade de Ileli, embora carioca por conta da conexão com o neo-realismo e com a ida da câmera para a rua, também é cosmopolita – não abrindo mão de sua filiação ao cinema de gênero na dramaturgia visual e musical.

Esse hibridismo entre o cinema de estúdio e o cinema de locação, entre o gênero policial e o neo-realismo, faz do diretor um antecessor de dois quase contemporâneos, Nelson Pereira dos Santos e Roberto Farias: o primeiro surgindo com uma modernidade realista, mas sem romper com a comédia de costumes cariocas, em Rio 40 Graus; o segundo impondo-se com uma preocupação com o espetáculo em Assalto ao Trem Pagador, depois de um começo no registro da chanchada em sua fase já declinante (virada dos 50 para os 60). Ileli marca essa posição dentro dos quadros da Atlântida, já em sua fase comandada por Severiano Ribeiro, período no qual filmes como Amei um Bicheiro, sem nenhum apelo cômico, tinham se tornado iniciativas em extinção, abrindo mão do projeto do estúdio idealizado por Alinor Azevedo, Moacyr Fenelon e José Carlos Burte: projeto de cinema barato, tecnicamente competente e em sintonia com seu tempo e sua sociedade.

A narrativa é centrada na figura de um funcionário do jogo do bicho (Cyl Farney) que, para pagar a cirurgia de sua esposa (Eliana), junta forças com um amigo (Grande Otelo) e bate de frente com seu chefe (José Lewgoy), tendo apoio e sustentação da  própria amante dele (Josette Bertal). A intriga nada tem de molejo, tampouco exalta a malandragem, como era costume nas comédias cariocas. Temos um mix de thriller com dramalhão, sempre levado com todos os esforços visuais e sonoros para manipular a tensão do espectador, mas sem perder a sobriedade do relato. Surge dessa codificação dramática e narrativa um universo habitado por seres de punhos cerrados, que são capazes de roubar, matar e colocar-se em risco de vida para não serem engolidos pelos poderosos (o chefe do crime). Se não chega a ser heróico, o protagonista demonstra boa índole em sua tortuosa estratégia de reação às circunstâncias, sendo visto como produto do meio, reflexo de seu percurso, de uma condição econômica.

Como tem sido em muitos filmes dos anos 2000, protagonizados por jovens lidando com os efeitos da falta de dinheiro e do desejo/necessidade de obtê-lo, tudo gira em torno de uma porção de notas em Amei um Bicheiro. Primeiro pela demanda de crescimento econômico, depois para salvar uma vida. No entanto, se durante todo o filme o protagonista solicita dos espectadores a compreensão para seus gestos, de modo a legitimar junto a nós as ações mais questionáveis e ilegais, ao fim temos uma crise de boa consciência, levando o casal de pombinhos (anterior ao de O Grande Momento, de Roberto Santos, mas em estágio posterior, após a lua de mel), na última seqüência, a assumir a responsabilidade pelo envolvimento com o crime.

A noção um tanto mítica de uma década de 50 ingênua e otimista no Brasil, é desmentida nas imagens de Ileli com uma declaração de antídoto a pílulas da felicidade, mostrando, acima de tudo, situações de um capitalismo pré-moderno, marginal, organizado em sua rede criminal, mas violento com quem dele depende para sobreviver. É essa a luta empreendida no núcleo do filme, a de um funcionário contra seu patrão, a de um explorado que se vinga contra o explorador, usando as armas do inimigo, mas só para depois colocar as coisas em ordem.

Apesar dos intensos elogios recebidos por Amei um Bicheiro, Ileli demorou nove anos para terminar outro filme (Mulheres e Milhões). Dedicou-se a reportagens de televisão e direção de cinejornais para Severiano Ribeiro (alguns deles elogiados por alguns críticos, por conterem imagens de grande apelo plástico e dramático). No alvorecer dos anos 60, tempo de Os Cafajestes, de Ruy Guerra, e Barravento, de Glauber Rocha, Moniz Vianna destaca algumas vocações: Rubem Biáfora, Nelson Pereira dos Santos, Roberto Farias, Walter Hugo Khouri e Jorge Ileli, esse à frente dos demais como promessa para o futuro. Pois o promissor Ileli, por razões do cinema e suas próprias,  dirigiu apenas mais dois longas, No Mundo em Que Getúlio Viveu (1963) e Viver de Morrer (1972), tornando-um caso de revelação nunca inteiramente cumprida. Porém, fundamental nos anos 50.


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