ensaios - especial retrospectiva 2006
Onde estão as alternativas?
por Eduardo Valente

Quando decidimos na Cinética que nossa retrospectiva seria feita de maneira individual, com cada redator falando das imagens que mais o marcaram nesse ano de 2006, olhei para a minha lista de filmes favoritos entre os lançados no circuito nacional, e não encontrei ali as imagens que mais me marcaram neste ano nos cinemas – aquelas de Mary, de Abel Ferrara; Síndromes e um Século, de Apichatpong Weerasethakul (acima); Juventude em Marcha, de Pedro Costa; Fica Comigo, de Eric Khoo; Bug, de William Friedkin. Reparei com alguma curiosidade que, numa lista de 20 filmes preferidos entre os lançados nos cinemas, nada menos que dez deles são produtos de DNA autenticamente hollywoodiano, lançados com estardalhaço em cinemas do mundo inteiro – 50% dos meus filmes preferidos do ano, portanto, são lançamentos do “circuitão”. Dois outros são filmes brasileiros de considerável repercussão; e quatro são os novos filmes de autores mais que conhecidos e “rodados” entre os cinéfilos brasileiros e do mundo (dos seis, dois tiveram grandes lançamentos por majors). Entre os quatro que sobraram, dois são filmes de autores pouco conhecidos no Brasil, mas que certamente não podem ser qualificados de “filmes diferentes”, uma vez que seus gêneros e trabalhos com a narrativa são de ampla comunicação com o público – não por acaso foram dois sucessos de bilheteria em seus lançamentos.

Sobravam assim dois filmes, entre os vinte melhores que vi nos nossos cinemas em 2006, que desafiam de alguma maneira os nichos mais explorados do comércio cinematográfico – sendo que o fato de um deles desafiar estes nichos (Eleição, de Johnnie To), diz mais de como estes são fechados do que da radicalidade do filme, visto que trata-se de um claro filme de gênero, que busca amplo contato popular (só que o filme de ação de Hong Kong ainda não é aceito nos cinemas brasileiros “de bom gosto”, pelo menos sem ser filtrado por um Martin Scorsese). Não se trata aqui, vejamos bem, de pregar que o único cinema interessante é o que desafia rótulos comerciais, até porque entre os meus cinco favoritos do ano, três são produtos de Hollywood. O cinema é plural, e desafia as definições simplórias entre comércio e arte. Mas, se não somos tolos ao ponto de achar que arte existe sem comércio, ficamos sim um pouco assustados de ver que o comércio é que está ditando toda nossa relação com essa arte.

Afinal, ao fim e ao cabo, apenas um filme entre meus 20 favoritos nos lançamentos de 2006 não poderia ser facilmente “categorizado” pelas regras mais banais dos circuitos do cinema: Amantes Constantes, de Philippe Garrel. Filme que, não por acaso, me marcou com uma das imagens mais fortes que vi em 2006, num cinema – ainda que tenha sido no lobby de entrada. Na vitrine das bilheterias do Arteplex carioca, que exibia o filme, havia cópias de um cartaz com letras pretas grandes sobre papel branco que “avisava” ao público que a cópia do filme em exibição tinha muitos riscos e algumas passagens incompreensíveis, porque a legenda branca se sobrepunha ao filme em preto-e-branco, e que o cinema se eximia de reclamações e culpas, por ter feito este aviso. Ao ler este anúncio tão radical, fiquei chocado e pensei duas coisas: “que pena, um lançamento tão precioso e eu jamais entraria para ver este filme ao ler este cartaz, se não tivesse muita certeza da importância de fazer isso, que desperdício de público”; e que a distribuidora tinha sido incompetente ao não fazer uma segunda cópia de um produto que se encontrava tão sem qualificação. Só fui ver o filme duas semanas depois, no Museu da República, uma sala bem menor e muito menos “da moda” que o Arteplex – e achei curioso ao chegar que o mesmo aviso não era exibido (ainda mais que, se o desgaste da cópia era parte do problema, duas semanas de exibição depois ela só teria piorado). Vendo o filme, constatei que a cópia tinha sim eventuais riscos – mas nada certamente que justificasse aquele nível de alarme que vi no cartaz – e que o problema da legenda se resumia, em um filme de quase três horas, a pouco mais que cinco, dez minutos, principalmente na última hora – de novo, nada de diferente do que já vi em muitos filmes hollywoodianos com cenas passadas sobre a neve ou afins (tanto que nenhum espectador da quase cheia sala do Museu se retirou da projeção ou comentou algo com o gerente na saída).

Foi aí que aquela imagem que tanto tinha me chocado (a do cartaz) começou a ficar mais clara: não se tratava exatamente de preparar o público para um produto de qualidade técnica deplorável, como o anúncio fazia supor (ainda que, dado o grau de alarme, desde o início eu tivesse pensado: “nossa, se está tão ruim assim, como o cinema se dispõe a exibir esta cópia?”), mas sim uma resposta à revolta de um certo público – que é muito mais o do Arteplex que o do Museu da República. Revolta essa que, agora tinha certeza, era muito menos contra a qualidade técnica da cópia e muito mais contra o filme em si – revolta tão mais explicada quando pensei no Bonequinho que aplaudia de pé no Globo (cortesia de Ruy Gardnier), quando do lançamento do filme, certamente levando gente ao cinema que não iria a princípio. Uma revolta natural até, de um público desacostumado a ver imagens que o desafiem da maneira como as de Garrel os desafia – e que, ao reclamar do filme com o gerente do cinema, poderia até citar eventuais defeitos para tentar entender seu desconforto, mas que com certeza não reclamava exatamente disso (afinal, repito, já vi cópias muito mais defeituosas ou projeções ruins não causando reclamações em série como o cartaz fazia supor). A meu ver, se trata de uma revolta boa, porque se refere ao sentimento mesmo de algo que se move e remove dentro da pessoa, instigada, incomodada com algo que fuja da sua experiência normal.

Mas, não, não temos mais espaço nos nossos cinemas para o que não seja “normatizado”. O complexo de cinema que representa um dos circuitos mais “de ponta” nos nossos lançamentos não pode lidar com um espectador insatisfeito, com um espectador confuso, não pode arriscar uma relação diferente da “pipoca-refrigerante-diversão garantida”. E esse é o grande ponto, o nó górdio da distribuição e exibição de cinema no Brasil: a impossibilidade do risco. O que antes era o circuito alternativo é hoje um circuito comercial como o outro, apenas lidando com cifras menores e público distinto. Por isso, o diferente é hoje tão deplorado lá como no circuitão – senão mais, uma vez que no circuitão certos filmes “esquisitos” acabam podendo escapar entre as frestas de um negócio gigantesco que, mal ou bem, será compensado pelos Harry Potter e X-Men de cada ano. No circuito supostamente alternativo, o que temos hoje é uma necessidade de apostar apenas no que dá resultado segundo as regras do público deste circuito – que, não de hoje, e cada vez mais (dentro desse círculo vicioso), se torna mais e mais conservador. Para além disso, num circuito cada vez mais inundado de títulos (questão que ultrapassa totalmente as fronteiras brasileiras, como matéria recente na Cahiers du Cinèma prova), há uma pressão maior por resultados mais imediatos, e menos tempo para dar atenção ao diferente, trabalhá-lo sem pressa.

O caso clássico, que já indicava há alguns anos a falência iminente da ousadia e do risco nos cinemas alternativos brasileiros, foi o do não-lançamento de Eureka, de Shinji Ayoama, no Rio de Janeiro. Comprado pelo próprio Estação, dono de uma das duas principais cadeias chamadas alternativas do Brasil, o filme nunca foi lançado no Rio após um fracasso no CineSesc paulista. O caso é exemplar por alguns motivos: afinal, se pode-se alegar em parte que uma distribuidora não investe num filme “arriscado” porque teria altos custos com direitos e confecção da cópia, neste caso este investimento já havia sido feito. Poderia-se ainda afirmar que a distribuidora teme não ter espaço nos cinemas do circuito – mas aqui a distribuidora era exibidora. Finalmente, podemos pensar que não haveria um circuito menor, de menor “custo” de manutenção deste “fracasso”, apenas com grandes salas que ficariam às moscas – mas o Estação tem salas de pequeno porte no Rio de Janeiro, onde poderia-se apostar que um lançamento pequeno, mais localizado, podendo ser este compensado pelos filmes mais “fáceis” das salas maiores. Com todas essas variáveis, porém, a opção foi pela colocação de Eureka na prateleira, pelo risco iminente de um “fracasso”.

É bom que fique claro que não estou aqui apontando o dedo exclusivamente para Arteplex e Estação – os casos citados, até por serem os de ponta. Acho plenamente crível, e louvável, pensar que eles têm empresas que possivelmente dependem de microresultados de bilheteria, que são mantidas com muito custo no mercado e que têm as melhores intenções. O que quero tratar é de algo maior, que ultrapassa mesmo as personalidades e empresas envolvidas, e que entra pelo lado justamente da transformação desta “alternativa” numa lógica empresarial. Estação e Arteplex hoje precisam dar lucro para manterem o tamanho que tomaram – e portanto não se pode mais esperar que cumpram os papéis que um dia cumpriram. Não os culpemos, pois, e procuremos de novo as reais alternativas – que, aliás, não podemos esperar que venham dos agigantados festivais organizados pelos mesmos grupos, com as mesmas preocupações. Claro que ainda temos um débito com estes festivais e circuitos por serem os que nos permitem ver um mínimo de coisas, mas isso se dá mais por ausência de alternativas a eles do que por uma prospecção realmente abrangente que façam.

Fato é que, se o lançamento de um Eureka é visto hoje mais como um prejuízo garantido do que como o investimento num público que se torne mais aberto ao diferente (e, afinal, se o que se oferecesse neste circuito fosse mesmo diferente, seria um público em formação para ele, que retornaria lucro mais para a frente); se Amantes Constantes causa espécie ao ponto de se precisar “alertar o público” contra ele; se o circuito dos cinemas não têm lugar para um Mary (também comprado para o Brasil e não lançado, por decisão da distribuidora), um O Mundo (Jia Zhang-ke), um Last Days (Gus Van Sant) ou nenhum filme de Apichatpong; se nem os festivais exibem nada de um Hong Sang-soo, de Philippe Garrel, de Hou Hsiao-hsien (e em todos os casos estamos falando das faces mais reconhecida do cinema de ponta, diretores de renome com filmes que passaram nos principais festivais do mundo – nada muito desconhecido ou realmente obscuro), é porque estes circuitos não servem mais ao cinema efetivamente alternativo, ao cinema que oferece alternativas.

Claro (e que bom) que hoje podemos contar com o emule e afins, que oferecem a única real alternativa aos ditames comerciais e empresariais do negócio do cinema – mas vale querer mais, vale querer ver estes filmes no cinema. Por que então não sonhar com festivais (incentivados, menores, mais baratos) com reais curadorias e investimentos no que é novo e vibrante na linguagem cinematográfica mundial? Por que não pensar que o governo, seja em que instância for, pode incentivar um circuito de salas menores individuais com programação diferenciada de fato, não pagando todas as contas, mas diminuindo custos em impostos, dando pequenos incentivos e/ou equipamentos (a França, um país capitalista – pelo menos até a última vez que eu chequei –, faz isso)? Em suma, retrospectando 2006 eu preferi sonhar com um 2007, um 2008 onde o cinema possa ser de novo espaço da pluralidade e da novidade reais – para que nestes anos eu possa retrospectar o circuito do ano anterior e ver nele as imagens que mexeram comigo.

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