ensaios
A Loucura de Almayer (Almayer's Folly),
de Chantal Akerman (Bélgica/França, 2011)
por
Pedro Henrique Ferreira
Presente
incoercível
A Loucura de Almayer
é uma adaptação bem peculiar do primeiro
conto de Joseph Conrad. Em primeiro lugar, porque todo o contexto
colonial do século XIX do original é reposto para
uma cidade moderna nos anos 1950. Em segundo porque, no ato de
adaptação/transcriação, há
um forte embate entre a proliferação das imagens
e aquilo que as palavras dizem, criando um abismo entre cinema
e literatura. E em terceiro (e principalmente), porque a diretora
inventa uma parte da estória, a que se passa no colégio-internato
de Nina (Aurora Marion), e cria um personagem que não está
na trama original, tão representativo e crucial que realiza
o ato que é o motor-primeiro da narrativa: Chen (Solida
Chan), um chinês, assassina Daïn (Zac Adrianasolo),
um malaio orgulhoso de suas raízes.
Em
termos cronológicos, este ato primeiro de Chen é
na realidade o último a acontecer, o que nos deixa muito
claro que a questão de Chantal Akerman é uma questão
do presente. Percebe-se que, se há um interesse de Akerman
pela obra de Conrad, é principalmente porque ela diz algo
sobre o problema crônico que até o século
XX assola a Malásia – o conflito político
entre chineses e malaios, enraizado na invasão colonial
britânica das rotas marítimas no século XIX,
que teria adquirido um caráter de revolta em 1969. Assim,
A Loucura de Almayer funciona por um retrospecto histórico
que recorrerá à palavra justamente para falar do
passado. Isto porque há um straubismo latente
no cinema de Akerman: a natureza da imagem cinematográfica
é a presentificação, não importa de
que realidade ou época se estiver tratando; enquanto a
palavra, por sua vez, já nasce como uma recriação
de um passado remoto – lembremos, por exemplo, da Roma Antiga
construída na Roma atual em Othon. Há,
portanto, uma forte ética da atualidade, mas que precisa
entranhar-se num passado para resolver seu dilema.
Entre a palavra (história) e a imagem (presente), não há uma conciliação. Enquanto vemos uma panorâmica au passant pelas florestas da Malásia, ouvimos as reflexões do mercador holandês Almayer. Enquanto vemos um barco indiano se aproximando, ouvimos uma narração que dá sentido àquele acontecimento. O resultado é um esvaziamento do espaço cênico e um trabalho por elementos imagéticos minimalistas que ganha sentido seja pela narração em off, seja pelos diálogos. A opção de trabalhar numa floresta – um espaço tão cheio de elementos vivos – mas abstrair do naturalismo e fazer do plano uma espécie de palco onde figuram poucos elementos, numa estética de rarefação, onde todos os movimentos de câmera (e não são poucos) são rígidos e justificados narrativamente, só denota a maestria de uma autora madura, que sabe precisar de pouco para dizer aquilo que precisa ser dito com força e plenitude.
Assim,
ao verter a trama para o século XX e voltar-se os olhos
para a educação e rebeldia da filha Nina em vez
da loucura megalomaníaca do mercador Almayer (o que, talvez,
daria num filme de Herzog), a diretora não se detém
unicamente no tema civilizatório, mas desnuda um outro
tópico que faz pleno sentido dentro de sua obra: a liberdade
feminina, sua função crucial no processo histórico
e sua potência de rebeldia. Quando sai do colégio
europeu que odeia, Nina acende um cigarro como um sinal de confronto;
mais adiante, ela foge dos domínios do pai com Naïn
não porque ama o príncipe malaio ou porque tem um
orgulho ufanista de sua raiz indígena, mas porque odeia
tudo que Almayer tentou fazer por ela. No belo plano final, Almayer
caminha em direção à câmera que, sábia,
já conhece o desenrolar de tudo. Ao parar, ele chora por
um longo tempo. Este gesto não é apenas a derrocada
do processo de civilização e de catequese, mas,
principalmente, de um processo que aprisiona o outro em sonhos
de tesouros secretos. E é também este o projeto
que criou os conflitos entre chineses e malaios armado nos momentos
iniciais.
Novembro de 2011
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