Alice no País das Maravilhas (Alice in Wonderland),
de Tim Burton (EUA, 2010)

por Fábio Andrade

O desencanto do desconhecido

Alice no País das Maravilhas é um filme de ambições nada desprezíveis. Em primeiro lugar, há o confronto direto a uma possibilidade de adaptação tradicional do livro de Lewis Carroll, que Tim Burton nega com acertada veemência. O universo de Carroll se tornou de tal maneira parte do imaginário coletivo ocidental que transcrevê-lo com fidelidade aos eventos do texto original faria com que o filme já nascesse velho, incapaz de portar seu próprio espírito. Em segundo, há a decorrência dessa negação. Pois uma vez que Burton descarta a possibilidade de adaptação direta, ele cria para si um problema mais interessante: como se aproximar do universo de Carroll e sua Alice sem passar pelo texto original? – ou melhor, assumindo que esse texto é um dado já assimilado, anterior ao filme. O caminho escolhido por Burton é excitante e mortal: colocar em crise esse universo, questionando esse empréstimo ontológico feito pelas gerações posteriores, e a pertinência daquela criação em um mundo já muito distante do ócio vitoriano onde a obra de Carroll firma raízes.

É preciso, portanto, desmontar Alice, o mito póstumo, e fazê-la retornar ao País das Maravilhas ciente de que ele não foi um sonho (invertendo a premissa ambígua do texto de Carroll), para então fazer uma escolha cabal: era ficção ou loucura? É essa a questão essencial para Burton: assimilar o mundo dos sonhos à realidade experimentada, à vivência da personagem, não como algo apartado, mas sim presente e tão determinante quanto o mundo “real” (o que obriga todos os adjetivos – seja físico, natural, concreto, etc – a vir entre aspas). Com isso, Alice no País das Maravilhas se aproxima do paradoxo de André Breton: “a imaginação é também aquilo que é, mas desconhecido”. A escolha que Burton faz para sua Alice (Mia Asikowska) é, portanto, a da constatação da imaginação como convite de intervenção direta no mundo – mesmo que isso se dê de forma intuitiva, sem reduzir o mistério a ideologia (a espada age por contra própria, basta que esteja nas mãos certas). É, portanto, a escolha do artista.

Não à toa, após a tomada de consciência de sua criação, Alice retorna ao mundo comum e resolve seus problemas – não porque retorna com razão ou clarividência, mas sim com a intuição de qual caminho deve seguir. Daí que a opção um tanto estranha de que Alice assuma, ao final, a empreitada imperialista do falecido pai seja resumida em intenção no plano do barco que desbrava o desconhecido – onde o impulso prático tem menos a ver com submeter o mundo além-mar, e mais com conhecê-lo. Mergulhando em si, Alice percebe o que existe para além do quintal, para além do espelho, para além de si mesma – contraponto claro e providencial ao autoritarismo da rainha Vermelha (Helena Bonham Carter), aquela que prefere ser temida do que ser amada. Para mudar sua própria condição, Alice precisa decapitar o dragão do desconhecido.

Tim Burton talvez fosse mesmo o artista mais apto a adaptar o texto de Carroll para o cinema, não exatamente por uma semelhança de estilos (sua câmera é por demais conservadora para tentar qualquer paralelo com a escrita de Lewis Carroll – com seus neologismos e suas combinações inesperadas que entortam palavras banais e fazem, do autor, um dos maiores), mas por ele ter um mesmo gosto pela criação de universos deformados, e um talento equivalente para a instalação do espectador (ou leitor) neste espaço inventado. Uma prova disso é que o maior deleite do filme está na maneira como o aprimoramento do CGI permite que as criaturas de Lewis Carroll possam, enfim, circular “feito humanas”, com ações, expressões e trejeitos (pensemos nas entradas e saídas de cena do gato, por exemplo) capazes de carregar e habitar um mundo.

Porém, à coerência das idéias do diretor, fazem-se necessárias algumas escolhas que produzem uma contradição bastante danosa: Alice no País das Maravilhas clama a necessidade de se mergulhar no mistério, mas enquanto mistério em si – enquanto obra de arte – seu impacto está aquém de suas afirmações (e, nesse mesmo sentido, muito aquém dos originais de Lewis Carroll). A imersão nesse universo fantástico – destacada pela opção do 3D – é desmontada pela necessidade que a escritura do filme tem de enfraquecer seu poder de encantamento. Pois se o mundo da ficção foi exilado no terreno dos sonhos, do não-vivido – como é o ponto de partida do filme – é necessário que o País das Maravilhas apareça deteriorado, com cores palidamente harmônicas que jogam o maravilhamento a um passado anterior ao filme.

Além disso, uma dificuldade intransponível de encontrar o tom apropriado para o filme (da qual a performance de Anne Hathaway é apenas o exemplo mais gritante, mas certamente não o único) dificulta a entrada nesse universo, uma vez que os tons acima da atuação parecem sempre ser fim, e não meio. O espaço ficcional é o rastro de um mundo que já foi; um país que tem seu nome retomado com a ironia que acentua sua própria falência. Restam apenas personagens e espaços esquecidos por sua criadora, reféns da tirania do impulso repressor inerente àquele próprio universo. Essa opção – ou melhor, essa necessidade – é o nascimento e a morte de Alice no País das Maravilhas. Nascimento, pois é ela quem garante que o texto de Lewis Carroll não seja retomado por vias literais, caducas e ineficazes. E morte, pois impede que o desejo que ela tem para sua personagem se realize entre os espectadores e o filme – relação, essa, que é a única que realmente importa. Alice no País das Maravilhas busca o encantamento onde ele já não mais é possível, em uma exultação que, embora justa, só encontra lugar nos epitáfios e obituários. 

Maio de 2010

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta