ensaios Passageiro
do tempo Sobre Além dos Trilhos,
de Wang Bing por Fábio Andrade
Shenyang
é uma cidade em desmonte. Outrora pólo militar na fabricação de armamentos para
o exército japonês, a cidade torna-se centro siderúrgico com a Revolução Cultural.
Lar para mais de 2 milhões de chineses, Shenyang é observada por Wang Bing entre
1999 e 2001. Nesse meio tempo, fábricas fecharão, famílias serão desalojadas e
os trilhos, tão presentes no movimento da cidade, serão, aos poucos, marginalizados
da vida econômica local. Wang Bing registra essa falência múltipla em Além
dos Trilhos (Tie Xi Qum, China, 2003), dividindo-a em três partes
coincidentes: Ferrugem; sobre as fábricas; Remanescentes; sobre
os moradores; e Trilhos. A divisão, porém, é mais uma opção de estruturação
espacial do que de recorte temático. As questões, em Além dos Trilhos,
são maiores do que os ambientes em que o filme se encerra e, por isso, o que vemos
na tela são apenas reflexos desse processo mais amplo da sociedade. Não existem,
nas 9 horas do longa de estréia de Wang Bing, três filmes complementares, mas
sim um filme só em que o acúmulo e a circulação de elementos visuais e narrativos
são necessários para a impressão do todo. Um filme dividido em três partes, mas
partes que refletem questões tão maiores, que seus subtítulos podem ser deslocados
para impressões que transbordam seus limites em tela.
Trilhos O
primeiro plano de Além dos Trilhos encapsula muitas das intenções da abordagem
de Wang Bing: com a câmera instalada na frente de um trem (o olho do trem), cortamos
Shenyang pela linha férrea. A câmera passeia pela cidade em velocidade surpreendentemente
lenta, com os olhos fixos em frente, sem nunca girar o pescoço com uma panorâmica
ou um movimento lateral que se contraponha à determinação dos trilhos. Esse plano
é tanto síntese do processo pelo qual passa aquele lugar, como da maneira que
Wang Bing se relacionará com o universo que ele escolhe filmar. Em primeiro lugar
por Além dos Trilhos impressionar, paradoxalmente, pelo olhar absolutamente
criterioso de Bing: uma vez sabendo estarmos diante de um filme de 9 horas de
duração, é difícil achar um plano que – seja na composição ou na duração – não
traga uma nova perspectiva, um novo dado sobre a situação que está sendo filmada.
Além dos Trilhos é de uma economia espantosa, pois se seu tempo absoluto
tem um peso, em sua diegese ele é reduzido ao absolutamente essencial. Se passamos
vários minutos observando trabalhadores carregando sacos de minério, é porque
essa atividade ganha um significado que só é encontrado nos segundos finais do
plano. O “olho do trem” diz muito sobre a absoluta certeza
do realizador de o que lhe interessa em tudo que filma, sobre sua convicção em
não olhar para o lado na hora errada. Existe uma abertura enorme para que o imprevisível
entre na filmagem, mas esta abertura só é produtiva por Bing saber exatamente
para onde apontar sua câmera em qualquer ambiente em que se instala. Pela handycam
mini-DV com foco e diafragma funcionando automaticamente, percebemos um diretor
absolutamente rigoroso em seus enquadramentos, em sua capacidade de recortar o
mundo com os limites do quadro, garantindo, sempre, que esse recorte estabeleça
relações e crie sentidos a partir da disposição física dos vetores enquadrados. A
segunda evidência do primeiro plano está em sua lentidão: Wang Bing tem um respeito
quase ritualístico por tudo que filma, e sua aproximação é tanto fruto quanto
evidência desse sentimento. Esse cuidado, porém, não é movido pela ilusão de se
fazer invisível, mas sim de permitir que seus personagens se sintam à vontade
com a presença da câmera – o que é radicalmente diferente. Embora a intimidade
alcançada por Wang fique evidente nos despudorados planos de nudez dos trabalhadores
das fábricas em Ferrugem, mais reveladora é a maneira como o dispositivo
do filme vai se transformando na medida em que a presença da câmera se torna conscientemente
mais natural. As personagens, que, até então, limitavam-se a serem observadas,
passam a perceber, pela presença da câmera, a singularidade do momento histórico
em que estão inseridas. Aos poucos, elas compreendem a câmera como ferramenta
de registro, e passam a, espontaneamente, falar diretamente com ela – ou melhor,
para ela. Existe, também, um caráter simbólico nesse
plano inicial que marcará uma terceira posição do realizador em relação ao que
é filmado: a apreensão do tempo que passa. Esse tempo, porém, não é tanto sentido
dentro de um mesmo plano (como ele trabalhará em seu segundo filme, Fengming
– Memórias de um Chinesa), mas sim em um processo que é costurado por essa
primeira imagem. Mais tarde, o mesmo plano do trem retornará, mas a tranqüilidade
e a fluidez da tomada inicial serão substituídas ou por um ritmo mais acelerado
ou, ainda depois, pelo encontro com um obstáculo que impede o trem de seguir seu
caminho. O trem – máquina suprema da revolução industrial e do espírito expansivo
burguês que gerou, entre outras coisas, o próprio cinema – aparece como metáfora
do processo de dissolução daquela sociedade. Estamos a ver um mundo a morrer –
e o infinitivo, aqui, é absolutamente essencial. A aceleração do trem, oito horas
depois daquele primeiro plano, vem representar em imagem o ritmo de um processo
que, nos dois anos que Wang Bing o acompanhara com sua câmera, saíra da morosidade
para a absoluta vertigem. O tempo, em Além dos Trilhos, é um tempo de degradação
que só pode ser compreendido se passarmos, nós espectadores, também por ele. Remanescentes Na
segunda parte de Além dos Trilhos, saímos do universo dos trabalhadores
siderúrgicos e acompanhamos, em uma vila da cidade, a vida dos adolescentes. Observamos
seus labirintos amorosos, suas vidas familiares, seus tempos mortos cheios de
vida. Não recebemos qualquer tipo de orientação de quem são aquelas pessoas (os
créditos limitam-se a dar nomes que rapidamente esqueceremos), ou qualquer informação
que as situe como personagens alegóricos de um determinado contexto social. Wang
Bing não faz julgamento ou denúncia sobre a situação em que elas vivem. Se chegamos
à miséria pelo contraste com o mundo em que vivemos, é uma impressão que passa
assim que Wang Bing determina que o importante é enxergarmos aquele espaço mais
como um conjunto de lares do que como um organismo. O que existe é um convite
a, de fato, observá-las em seu movimento. A chave para desmontar a aparente aleatoriedade
vem em uma conversa montada de forma a conservar sua casualidade: interrompendo
a descontração do papo entre amigos, um dos rapazes pergunta para outro se sua
casa não está na lista de demolições do governo. Ele responde que sim. Além
dos Trilhos é construído, sobretudo, pela instalação do olhar, pela vivência
de um quotidiano que é, como qualquer outro, determinado pelo tempo. É um filme
sobre a duração – palavra que pode ser pensada tanto por sua raiz etimológica
(pois para conhecermos o que dura, precisamos passar pelo que não sobrevive ao
processo), quanto pela definição de Bergson, e a idéia de que toda fatia de movimento
exprime a mudança da duração, do todo. Para termos uma impressão aproximada do
peso dessas demolições, é preciso que conheçamos o que será perdido. Só depois
de uma hora participando da vida daqueles jovens é que teremos uma impressão mais
completa de tudo que será destruído, de tudo que deixará de existir com aquela
intervenção em seus lares. A abertura controlada de Wang
Bing em relação ao acaso se mostra novamente essencial, pois uma pequena conversa
é capaz de ressignificar tudo que havíamos visto até então. Pouco a pouco, percebemos
que essa dupla influência acontece tanto na relação entre dois planos como entre
os vários elementos dentro de um único plano. Pois, uma vez o espectador colocado
em sintonia com aquela existência, tudo que é mostrado ganha peso de metáfora,
de simbolismo. Depois de ouvirmos um senhor de idade dizer que os jovens chineses
estariam em um limbo entre a identificação completa com o regime (caso de sua
geração) e a revolta contra essa instituição, a voz de uma jovem que, fora de
quadro, canta uma canção sobre como “se apaixonar é fácil, o difícil é manter”
se constrói como metáfora para toda a relação entre cidadãos e Estado que vemos
em tela. Em
filme construído a partir da deteriorização causada pelo tempo, a linearidade
da montagem ressalta os remanescentes não como sobreviventes, mas como artefatos
de um tempo morto que perturbam a paisagem do presente. Seja pelo último barraco
que se pronuncia à horizontalidade das demolições, pelas canções nacionalistas
que os mais velhos cantam no karaokê, ou pelas gigantescas fábricas abandonadas
que duram para além de suas funções originais (raciocínio que Wang Bing aprofundaria
em Brutality Factory, seu episódio no filme coletivo O Estado do Mundo),
a paisagem, em Além dos Trilhos, parece não ser mais do que o empilhamento
das histórias que o tempo, progressivamente, pôs ao chão. Ferrugem A
imagem perfeita para esse tempo que passa está sugerida no título da primeira
parte de Além dos Trilhos: ferrugem. É ela a superfície de um novo tempo
que se deposita sobre um tempo anterior, corroendo-o aos poucos, mas sem destruí-lo
por completo de imediato; escondendo sua base sob uma camada de presente. Mais
do que uma crítica pontual a um caminho tomado pelo andamento da história, Wang
parece interessado em pensar a própria idéia de história, ou a própria idéia de
tempo: existe, em Além dos Trilhos, uma preocupação aguda com a linearidade,
pois a camada de ferrugem é algo que se instala progressivamente, dia após dia.
É
ela, também, que protagonizará a imagem mais forte de Além dos Trilhos:
ao fim da demolição de toda uma comunidade, um morador remanescente arrasta peças
de ferro encontradas nos escombros da antiga vila. Entre os restos, está uma chapa
metálica idêntica às produzidas nas linhas de montagem, agora já desativadas,
que vemos em pleno funcionamento na primeira parte do filme. Mas, se antes vimos
centenas dessas chapas saindo, estalando de novas, das fábricas, a folha do presente
está retorcida e coberta de ferrugem. É por essa capacidade ímpar de condensar
o devir histórico de um império industrial e a relação espaço-tempo do cinema
em uma mesma imagem que Wang Bing concretiza, em Além dos Trilhos, uma
das estréias mais impressionantes do cinema recente. Maio
de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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