Além das Montanhas (Dupa
Dealuri),
de Cristian Mungiu (Romênia/França/Bélgica,
2012)
por Rafael Castanheira Parrode
Jogo de cartas marcadas
Cristian Mungiu é, ao lado de Cristi Puiu, dos principais
representantes do cinema romeno contemporâneo. Ambos parecem
ainda dividir visões similares de cinema, projetos estéticos
que tendem a se complementar, levando adiante essa concepção
de um cinema mundano, despojado, fincado num realismo extremo,
seco, que assume uma fisicalidade, de uma câmera na mão
que sublinha essa aproximação direta com o real.
É, aliás, uma tendência do cinema contemporâneo
já muito explorada desde os irmãos Dardenne, mas
que ganha com os romenos uma urgência, uma agressividade
perturbadora. Tanto Puiu quanto Mungiu estão ligados intimamente
a questões políticas e sociais de seu país.
Em A Morte do Sr. Lazarescu, Puiu filma com uma secura
impressionante os últimos dias de um homem que, à
beira da morte, é internado em um hospital público
de Bucareste. No ano seguinte, Mungiu surge com 4 Meses, 3
Semanas e 2 Dias, vencedor da Palma de Ouro em Cannes 2007.
O filme mais uma vez lida com uma questão de saúde
pública romena, ao filmar uma jovem grávida que
procura alguém que lhe faça um aborto ilegal.
Esse
é também um cinema dissimulado, obtuso, que esvazia
seus personagens em prol de uma imparcialidade, colocando-os em
estado apático para lançá-los em pequenas
espirais de horror. Em seus filmes seguintes, ambos parecem tentar
radicalizar esse estilo, depurando ao máximo esse esvaziamento
para evitar quaisquer tipos de julgamentos morais de seus personagens.
Tanto Aurora, de Cristi Puiu, quanto este Além
das Montanhas lidam também com questões sociais
e éticas, mas agora buscam realinhá-las a partir
de uma perspectiva psicológica, de traumas e conflitos
existenciais que afligem a sociedade romena. No caso de Aurora,
a história é sobre um homem, pai de família,
que sem motivos aparentes, assassina uma a uma todas pessoas próximas
a ele. É um exercício radical, austero e perturbador
de 3 horas de duração. Além das Montanhas,
na mesma esteira, parte de subjetivações para personagens
que nunca se revelam diante da câmera.
É, então, um filme sobre o invisível, uma
vez que, para além do apagamento das motivações
que movem os personagens, tenta lidar diretamente com questões
de fé e espiritualidade. Mungiu segue esse processo de
radicalização encampado por Puiu, nos colocando
diante de um espiral de desespero e crueldade muito maior do que
o aquele visto em Aurora. Afinal, agora, por mais imparcial
que o filme tente ser, ele é sobre as vítimas e
não sobre o algoz. Nesse sentido, é interessante
que Além das Montanhas tenha sido premiado em
Cannes justamente como melhor roteiro, quando estão nele
as suas maiores deficiências. Existe, acima de tudo, uma
incompatibilidade entre forma e conteúdo que revelam um
enorme cinismo de Mungiu ao lidar com as questões religiosas
de seu país. Pois, por mais que ele esconda as verdadeiras
motivações de seus personagens, elas estão
ali, cristalinas, pra não dizermos óbvias, através
do roteiro. Mungiu decididamente tem uma posição
claramente anti-clerical, e, apesar de se furtar a tanto, realiza
um filme moralista, dissimulado tal qual seus personagens. Todos
eles já estão condenados desde o primeiro momento,
foram julgados e sentenciados antes mesmo do filme começar.
Afinal,
mesmo que as personagens do padre e das freiras pareçam
cheios de boa vontade, cheios de amor para com a fé e para
com o próximo, eles são sabotados pelas sutilezas
de um roteiro que insinua o tempo todo as sua vilanias. Sutilezas
que, aqui, são costuradas através de alguns diálogos
e enquadramentos que dão a entender que eles são,
acima de tudo, monstros tentando exorcizar uma mulher possuída
por amor. As protagonistas, nesse sentido, são construídas
como vítimas, garotas que se conheceram num orfanato e,
após anos de separação, se encontram em Bucareste,
onde uma delas vive num convento na zona rural da cidade. Mungiu
filma ressaltando todo um contexto arcaico, sujo e escuro, construindo
uma atmosfera de horror, dando a impressão de que em alguns
momentos o filme se passa na idade média, mesmo diante
do extremo realismo das imagens.
É nesse momento que Mungiu parece revelar as deficiências
de seu projeto, uma vez que o filme insiste em manter a rigidez
de seu procedimento estético, reforçando o realismo
desse cinema árido acima de tudo. Afinal, por mais que
Mungiu resseque toda a sua encenação e minimalize
todas as ações dos personagens, a maneira como o
roteiro se desenvolve faz pensar mais nos filmes de Lars Von Trier
(de Onda do Destino, Dançando no Escuro e Dogville),
nos quais os personagens são transformados em conceitos
morais para, ao final, o cineasta poder delinear uma fábula
sobre o horror da condição humana. A diferença
está apenas na maneira como o realismo condiciona a sua
relação com o espectador.
E é bastante sintomático que Mungiu construa seu
filme sobre um tom de austeridade, seriedade, para ao final derrubar
todas as peças de um jogo que ele tentava esconder, zombando
dos próprios personagens, numa sequência final na
qual o diretor parece querer então fazer o seu comentário
sobre o horror incompreensível da humanidade. Num rádio,
escutamos que um pai assassinou toda a sua família sem
motivos aparentes (Aurora?), e logo em seguida ouvimos
os comentários dos policiais refletindo sobre a complexidade
da condição humana, indagando os porquês
de tamanha monstruosidade. Se Puiu, em sua radicalização
conseguiu provocar tais reflexões de maneira bastante consistente
e perturbadora com Aurora, de fato nos colocando diante
de um personagem opaco para, a partir daí, nos revelar
suas complexidades, o transformando em um enigma indecifrável,
Mungiu por sua vez, em Além das Montanhas, nos
entrega personagens já desvendados, chapados, que, por
mais que tentem se esconder nas sombras, já têm seu
retrato falado divulgado desde o princípio, como representações
malignas da condição humana, sanguessugas de uma
sociedade corrompida pelas raízes do mal. A aproximação
com Von Trier passa então a fazer todo o sentido: Mungiu,
agindo aqui como Deus, lança sua heroína dentro
do filme para levar amor aos personagens, cada um representante
das mazelas da condição humana, que mais tarde irão
crucificá-la em nome de seus papéis de homens impuros
e vazios de amor. Se o filme se faz previsível desde os
primeiros momentos, ao final, saberemos exatamente quem é
quem nesse jogo de cartas marcadas erigido por Mungiu.
Outubro de 2012
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