ensaio

A catedral esquizóide de Glauber
por Luiz Soares Júnior

A Idade da Terra é uma sinfonia bárbara; cada um dos seus movimentos traz em seu rastro uma história, e a síntese de suas harmonias é uma foz onde desembocam grandes aventuras do cinema contemporâneo. A Idade da Terra, em sua fome associativa, em seu fascínio pela metonímia e pela contaminação metafórica, carrega ligações com a trilogia fantasma de Rivette, mas também com o cinema de Jodorowsky, Anger, Jonas Mekas, Syberberg, Ferreri; e com Joyce, Artaud, Ionesco, o Genet teatral. Grandes antropólogos visuais, assim como Glauber: inventariantes – e recicladores – dos signos de uma cultura.

Em seu filme – sua catedral esquizóide -, Glauber perverte esta cultura por múltiplos deslocamentos, aliterações, fusões e desfusões (do som com a imagem, da performance e do cenário, do texto exangüe em A Idade da Terra e dos corpos lúbricos, imundos de luz de cabaré e teatro barato, que simulam corpos que respiram, quando já estão mortos há pelo menos 10 mil anos); a cena com um mago e sua caveira, diante da TV, mostra-se uma arena para a expiação de uma boa parte das obsessões psicanalíticas que o cinema ainda entretém com a cena teatral e o seu poder de forjar projeções com a aquiescência tácita do espectador, sem precisar forçá-lo a 'acreditar em nada", sem o concurso da verossimilhança.

Aliás, este é o contrato do teatro: você finge que é de verdade, eu finjo que é de verdade, mas todos vemos e sabemos que nada é de verdade. No cinema, porém, esta escaramuça tem de passar por uma terceira mediação, a fotografia, o índex de realidade acoplado à imagem; não conta apenas o acordo tácito inter-subjetivo do ator e do espectador; esta relação não é suficiente para dar crédito à representação, que tem ainda de lidar com a “opacidade do mundo” – das coisas que, no cinema, situam, constrangem e legitimam todo discurso.

O cinema, arte ferozmente ontológica, geralmente se ressente desta violação de seus domínios pelo desproporcional e pelo fantástico implicados na visão estilizada do mundo. Simbolizar é sempre demais no cinema, pelo menos a princípio. As coisas não suportam o peso das idéias, elas são bibelôs muito frágeis. Uma pedra de papelão no teatro, por ser apreendida diretamente pelo olho humano – imantado de imaginário – pode “passar” por real, “fazer-se de” real, graças ao acordo tácito entre os sujeitos envolvidos; mas no cinema, a pedra de papelão é fisgada pela fotografia; ela passa pela prova do real, e se mostra sempre como um ovni, um objeto inassimilável ao meio.

Em A Idade da Terra, porém (assim como em Duelle, Scorpio Rising, Os Negros, Finnegan’s Wake, Santa Sangre, Walden, Ciao Maschio, Heliogábalo, imperador coroado, Hitler - um filme da Alemanha), ocorre o milagre de acedermos à verdade “a partir da cena”, da “mentirinha”, da convenção do “eu acredito e tu finges”. Como no teatro. Por intercessão das fantasmagorias do teatro – e unicamente por meio destas – acedemos à VERDADE(s) das coisas. Mas o palco aqui se dispersa por largas planícies e se mede por uma outra temporalidade.

É justamente aí que A Idade da Terra se mostra o grande monumento fúnebre que Glauber erige aos seus fantasmas; neste domínio total – totalitário – do artifício sobre a ontologia, desta extrapolação constante de imagem por todos os perímetros, dos limites da Natureza (ontologia) e da Cultura, desta essencial violação dos corpos e das paisagens pela encenação, não há “peso”. Não há uma superafetação (superinfecção) da coisa pela palavra; elas se reconciliam pela experiência de seus próprios limites. Transparência, aliciamento solene e transitivo entre as coisas e a ideologia, ausência de interstício simbolizante, pedante, de “peso”? Adequação total entre ritmo e presença, entre materialismo e  mito, corpo e deidade? O mundo agora é teatro; a acrobacia é nossa forma de respirar, é nosso sangrar e ser sangrado.

Digo isso porque sempre me ressenti, em Glauber, de uma certa hipertrofia demagógica, onívora do discurso, algo que ameaçava fazer soçobrar suas imagens, no entanto tão fortes. De um querer abarcar o mundo – não apenas o mundo do cinema – com a força das coitadinhas das imagens, tão evanescentes e delicadas! Uma ambição transcendentalista e pedagógica, uma vontade de potência que não começava na imagem nem acabava na imagem. Nunca antes vira, em Glauber, esta leveza, esta rarefação atmosférica de A Idade da Terra; aqui, as coisas falam por si mesmas, mas também falam de um mundo, do ocaso de um mundo. Não falam “por” este mundo, mas “de”. Nada além, nada aquém. Interdição do símbolo; interdição do ocultismo. Nada é demais, nada “sobra” neste filme tão rarefeito, tão solarmente infectado de superfícies, de espelhos, de uma luz ofuscante onde o Brasil se perde na extrapolação de seus ritos, e se reencontra do outro lado do espelho, exangue e empalhado. A obra de arte como mausoléu de um mundo. E de um homem.

A montagem de A Idade da Terra não é dialético-teleológica, não serve ao símbolo, este estigma de toda representação; como em Fando y Lis, O Bandido da Luz Vermelha e Noroit, ela é feita de iluminações, de rasuras e relâmpagos que irisam a narrativa com sinapses cujo objetivo é, não perfazer uma totalidade causal, mas semeá-la de buracos negros que sugam toda aspiração a uma completude. Há uma razão dupla para esta reconciliação entre coisas e idéias, ontologia e artifício. As idéias aqui estão frouxas de riso, esmaecidas, não se sobrepõem às coisas, não planam sobre (acima) delas; são os pilares da farsa; um filme assumidamente clownesco, descrente. Ateu até a medula. O discurso nunca salvou ninguém, muito menos a idéia de um mundo por-vir, em Glauber; mas aqui esta idéia do discurso como estratégia de massacre e de liquidação da utopia se torna arquetípica.

Assim, temos o discurso bêbado e megalômano de Maurício do Valle (genial, por sinal), fresta de pornochanchada em Danusa Leão, discurso tautológico e repetitivo por excelência no Cristo militar; chanchada e charada por todo lado. Os deuses de dentadura (como aliás também no Hitler, um filme da Alemanha): a melhor maneira de dessacralizar o poder é imitá-lo, mas do ponto de vista da criança, de quem vê tudo de baixo, de quem vê “a partir do chão”, do reles, do passageiro, do irrelevante. De quem não se leva a sério. E quem disse que o artista não é uma criança?

O que se desenhava como crise, como encruzilhada ideológica em Terra em Transe, em A Idade da Terra volta como beco sem saída. No psiquismo humano, tudo o que não foi processado simbolicamente volta; é o fantasma, gerado pela oclusão da figura paterna, em Lacan. Dois fantasmas, aliás, que sempre ameaçaram soterrar a figura pública de Glauber como utopista estão novamente em cena: a demagogia e o reacionarismo. Deus e o Diabo. Nas cenas do “confronto” farsesco do Cristo militar e de Brahms, com as bandeiras, A Idade da Terra exibe o irrisório e o chavão como a outra face de Jano do crepúsculo dos deuses, que Glauber Rocha representara no filme de 1967. O zumbi paranóico em que se transformara Paulo Autran no final do filme anterior dá o tom geral deste aqui.

Paralela à fraqueza dos discursos (das idéias), temos a anemia das trajetórias; os corpos e suas peregrinações, apesar da exuberância exibida – ou justamente na medida da exuberância de overdose exibida-, estão moribundos. Os Cristos de Idade da terra estão todos com um pé na cova; um bêbado, caiçara, outro um alemão cardíaco, Tarcísio Meira como um autômato, arrastado pelo desfile no início do filme... o mito do herói, o ocaso do mito, o herói do ocaso... E as encenações mortuárias? Norma Benguell velada por um cortejo de monjas, clamando por liberdade; o lamento escatológico de Tarcísio Meira à beira da baía suja, Antonio Pitanga, profeta sem Deus, esta excitação taumatúrgica que desfralda as bandeiras de glória e de luto em Glauber Rocha. Aqui, aliás, as figuras da glória e do luto se conjugam, perfazendo uma única careta, borrada de sangue; masoquismo apocalíptico.

Glauber conta, no “comentário em áudio” perto do fim, que teve o primeiro insight sobre o filme no velório de Pasolini; diante do cadáver do poeta assassinado, a idéia de um mundo crucificado, sem norte e sem princípios; o artista demiúrgico vira uma anteninha vibrante (arquejante) cravada no monturo destes destroços, destes estilhaços que fazem de A Idade da Terra o filme negativo por excelência da utopia escatológica. Pela alucinação maníaca, diferencial com que estes estilhaços são friccionados entre si, o filme se recusa a dar conta de uma figura definida da utopia, mas permanece como a Idéia, o modelo aberto de todas a suas configurações.

Junho de 2008

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