in loco Imersões
narrativas por Lila Foster
A expectativa
que comumente se tem em relação a videoinstalações é de que elas sejam, antes
de tudo, experiências sensoriais. Mas, The House (A casa, 2002), trabalho
da artista finlandesa Eija-Liisa Ahtila exibido no terceiro andar da última Bienal
de SP, surpreende pelo seu caráter fortemente narrativo. Numa
sala escura, três telas – uma frontal cercada por mais duas nas laterais – trazem
a projeção da história de uma mulher que chega em casa e vai narrando a sua relação
com a rotina e os espaços: “depois tem um corredor onde tiro a roupa que uso lá
fora”.
Inicialmente,
estamos diante da mesma seqüência, ou seja, as telas compõem uma unidade temporal
e espacial. A imagem aérea de um carro pela estrada é simultânea e pouco variada
em relação às três telas: o olhar organiza facilmente as três fontes de informação.
Em voz off, a mulher vai nos descrevendo os espaços e as imagens que, se
antes eram similares ou contíguas (por exemplo, a tela central nos mostra a frente
da casa e as laterais nas outras duas telas ou a mesma ação vista de dois ângulos
diferentes), aos poucos nos mostram outros pontos de vista do espaço.
A
questão, no entanto, não é somente de uma divisão espacial. A voz, off
ou presencial dependendo da tela, é evidentemente intimista e interiorizada criando
referências que estabelecem os mais diferentes tipos de relações visuais, semânticas
e emocionais. A voz (off) diz, “as árvores vistas daqui estão bem em frente”
e uma das telas nos mostra a mulher que olha para fora e a outra nos mostra as
árvores, criando um outro tipo de continuidade espacial, aquela que articula o
que a mulher vê e o que a voz indica, como se a história dessa mulher fosse contada
de dentro e de fora: enquanto o olhar dela é uma subjetiva, o nosso olhar é objetivo
porque distanciado e com pleno acesso às diferentes imagens e significações. Até
aí, a sensação que se tem é de uma enorme maestria na organização visual do espaço
e isso faz dessa narrativa uma obra “supra cinematográfica”: o efeito causado
pelas três telas faz com que o espectador viva uma imersão muito maior do que
quando diante de uma narrativa clássica costumeira, na qual a transparência garante
a imersão acompanhada da segurança de saber para onde estamos sendo levados.
O
que acontece em The House é que nós estamos sendo levados para dentro de
um surto. O som que vem de fora da casa começa a incomodar a mulher profundamente,
como se tudo que a rodeia começasse a viver dentro de si. Este incômodo é o principal
indício de um desequilíbrio. A lógica se dissipa e dá entrada para um universo
que, se não está absolutamente em descontrole, desfaz essa divisão entre o interno
(a mulher, a casa) e o externo (as árvores, o vizinho, o nosso olhar). E, quando
se instaura essa nova ordem, começamos a nos questionar se um plano que simula
uma subjetiva será capaz de nos revelar algo além de somente mais um ponto de
vista, porque, nesse momento, uma vaca cruza a sua sala de estar. O plano próximo
do rosto da mulher e a sua voz narrando um momento claro de confusão e solidão,
traz na tela ao lado o plano de um quarto vazio, pintado de branco. A contigüidade
agora está em função dessa imagem interior que já vinha sendo lentamente construída.
A imersão na narrativa agora se faz de imersão numa leve loucura, nos levando
a plenitude da experiência sensorial quando a mulher voa lentamente por entre
as árvores aterrissando.
Neste
trabalho de Eija-Liisa Ahtila, que estudou cinema na London College of Printing e no Advanced Technology Program
do American Film Institute, as sensações se fazem mais intensas, pois o
trabalho se utiliza da continuidade espacial e o seu papel fundamental na construção
de narrativas transparentes, que não trazem à tona o artifício do fazer cinematográfico
- mas o que se faz não é cinema. Existe um distanciamento, não porque os artifícios
são desnudados, mas porque o corpo e a mente são impelidos a organizar em ato
todas as perspectivas. Quando é desfeita a divisão interior-exterior, se realiza
plenamente a idéia de artista de suas instalações como “sensory surroundings”.
A sensação se assemelha à experiência de andar pela rua observando a cidade e
as pessoas que passam, com o pensamento tocando uma música que provoca uma lembrança,
o olhar que fantasia diante de estímulos visuais e sensoriais, a multiplicidade
de projeções, sensações e pensamentos que somos capazes de produzir e reproduzir
em um mesmo segundo. Diante dos vários estímulos, de um olhar que
se divide em três telas, é inevitável que cada espectador
construa a sua história, o que reflete a afirmação de Eija-Liisa
Ahtila: in the end, narratives are a matter of perspective. Mas, a
obra vai bem além disso pois as perspectivas não se referem a uma
espécie de subjetivismo, de um sujeito como pólo emanador
de sentido ou da recepção particular e individual de cada corpo.
O que The House nos traz é a sensação intensa da instabilidade
do pensamento e, por consequência, das próprias narrativas.
Dezembro
de 2008
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