ensaios
A Filha do Nilo (Ni luo he nu er),
de Hou Hsiao-hsien (Taiwan, 1987)

por Fernando Toste

A Filha do NiloTido por muitos como um filme menor em uma carreira salpicada de obras-primas, A Filha do Nilo se destaca na obra de Hou Hsiao-hsien apenas por apresentar elementos inéditos no até então curto conjunto de filmes do mestre taiwanês, elementos esses que iriam ressurgir em trabalhos posteriores, mais maduros e apurados. Assim, apesar de suas características visuais marcantes e de seu feitio delicado - que, sim, empalidecem na comparação com um Flores de Xangai ou um Adeus ao Sul -, A Filha do Nilo não costuma render mais que uma nota de rodapé na literatura sobre Hou, que costuma registrar apenas o fato de que o diretor, pela primeira vez, monta uma narrativa ambientada na capital Taipei e centrada em uma personagem feminina e jovem.

De fato, não é um desses casos de um trabalho que pede reavaliação urgente, mas de um filme que merece ser apreciado em sua estranha condição de filme menor, rejeitado pelo autor e abandonado pela crítica. Há muitos elementos que certamente serão apreciados por fãs do estilo do diretor, tais como a atenção peculiar ao ritmo interno das cenas, os planos longos, o fino senso de composição dos quadros. Há ainda o surgimento de novos elementos no universo de Hou, que pela primeira vez incorpora as luzes e texturas de Taipei ao seu repertório visual, com resultados muito interessantes. E para os que primeiro tiveram acesso aos filmes posteriores de Hou, resta ainda o prazer da descoberta, em sua obra, de um conjunto de opções que seria retomado no excelente Millenium Mambo - um filme que, à época, surgia na obra do diretor como um objeto estranho (ainda que belíssimo).

Mais importante, A Filha do Nilo não depende de nada disso para ser apreciado. É, dos que tive oportunidade de assistir, certamente o filme de mais fácil fruição de Hou. Talvez seja até mesmo uma boa porta de entrada para seu cinema. Convivendo com uma construção narrativa mais linear, sem nunca se sujeitarem a ela por completo, os planos longos (mas nem tanto) e os ritmos delicados que o diretor imprime à ação podem ser apreciados em um registro mais convencional, como um puro exercício de estilo. Mas, mesmo aparentemente tímido em sua excursão pela vida noturna de Taipei e em seu retrato das figuras patéticas que circulam nesse ambiente, Hou consegue imprimir uma ressonância muitas vezes marcante ao seu relato.

A Filha do NiloO fiapo de trama gira em torno de Hsiao-yang (Lin Yang), uma jovem comum que vive na periferia de Taipei junto com sua família – ou o que parece ter restado dela depois de alguma tragédia particular. Seu irmão mais velho, um marginal sem maiores ambições, passa as noites no restaurante que administra com seus amigos, um bando de gângsters que não sobreviveria um minuto sequer em um filme de John Woo. Sua opção de carreira torna o convívio com o pai, um sujeito que trabalha e mora numa cidade vizinha, insuportável. Enquanto administra a tensão dentro de casa, Hsiao-yang divide sua rotina entre os cuidados para com sua irmã pré-adolescente e o avô viciado em jogos de azar, o trabalho no Kentucky Fried Chicken, o convívio com os amigos do irmão marginal, a escola noturna e a leitura de um mangá japonês ("A filha do Nilo", daí o título), uma rara oportunidade para fugir do dia a dia massacrante.

Com seu senso apurado de composição dos planos, Hou opta quase sempre por empurrar as personagens para as margens das cenas, permitindo que o centro da narrativa permaneça o tempo todo desocupado, livre da influência das próprias personagens. É uma escolha clara de preservar a distância, de não se deixar contaminar pelas emoções fortemente reprimidas que permeiam a história, que caminha lenta e gradativamente para a tragédia – mas uma tragédia sem catarse, vista com olhos de quem vê o processo como mais uma mera etapa da inexorável degradação daquele núcleo familiar.

A Filha do NiloMas isso não significa que a câmera de Hou seja por demais fria ou cirúrgica. Há, em meio à fumaça e às luzes de neon refletidas no asfalto molhado, todo um repertório de imagens que denuncia um interesse muito mais que casual no drama de Hsiao-yang e de seus parentes. São momentos em que as personagens, sempre em fuga e perdidos em meio aos ícones de modernidade onipresentes na cidade grande (quadrinhos, música pop, fast food), tomam para si o centro da história e deixam entrever uma insuspeita melancolia, uma triste constatação da crise de valores da qual são ao mesmo tempo vítimas e agentes. Como em todos os filmes de Hou, é preciso levar em consideração a matriz histórica de violência e repressão do passado recente de Taiwan, assim como as intensas transformações da ilha na segunda metade do século passado, para se perceber as nuances de sua visão humanista, que é de rara sofisticação e profundidade – e sempre relevante, até mesmo em um filme "menor".

Dezembro de 2010

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