A Falta que Nos Move,
de Christiane Jatahy (Brasil, 2009)
por Eduardo Valente
E
o teatro, o que é?
Quando sai da tela o último plano
de A Falta que Nos Move, aparece um crédito que nos informa
sobre os 10 “procedimentos” para sua realização. Trata-se de uma
lista que inclui algumas das “regras do jogo” (do tipo “três câmeras
rodando simultaneamente” ou “doze horas seguidas de trabalho”),
além de outras questões que falam mais sobre estatutos
referentes àquilo que acabamos de ver (“algumas histórias
são verdade, outras não”). Mais do que explicar algo sobre o processo
do filme a partir destes tópicos, porém, o que esta lista nos
explica acima de tudo é algo que resideno simples fato
da necessidade de sua existência em tela: A Falta que Nos Move
é um filme-exercício, um filme-processo, um filme-dispositivo,
e sem a explicitação de suas regras não faz sentido – talvez,
e isso é sintomático e importante, menos para o espectador, do
que para os responsáveis pela sua realização.
No entanto, e essa distinção é essencial, se falar das suas condições
de realização é algo tão importante para o filme, é claro que
A Falta que Nos Move poderia optar por expor estas regras
de saída, colocando-as na tela antes do filme e não no final.
Por que, então, esta escolha de expor esta lista só no fechamento.
Claro, há a resposta mais óbvia e simples: porque assim o espectador
pode ficar em suspense ao longo da projeção, tentando compreender
por si mesmo algumas das condições que regem o comportamento e
a ação em cena dos atores, e também da equipe técnica (câmeras
“vazam” em quadro várias vezes ao longo do filme – mas de uma
maneira bem radical logo nos primeiros planos, como se a dizer
“olha, isso pode neste filme”; e a diretora “intervém” na ação
através do envio de eventuais torpedos de celular para
os atores/personagens).
Mas,
se há este motivo prático compreensível para esta opção da exposição
das regras no fechamento, ainda assim ela não deixa de ser altamente
questionável, pelo simples fato de que é uma traição ao que o
próprio filme parece querer afirmar como sua principal profissão
de fé: o fato de que a arte da performance de um ator possui força
tal que, mesmo assumida totalmente a falsidade da encenação (câmeras
em cena, atores se referindo constantemente ao fato daquilo ser
a realização de um filme), algo acontece ali em que intrinsecamente
nós acreditamos. Mas, se isso é verdade mesmo, qual a necessidade
então de atrelar o filme a esta exposição de regras ao final?
Por que o espectador precisa de explicações, ainda mais na saída
do filme, se supostamente o mistério e a indistinção sempre se
afirmaram como potências em cena?
É neste ponto que voltar ao trabalho de Eduardo
Coutinho (e não só o mais recente, em que propõe mergulho mais
radical no estado de teatro inerente ao contato humano) se torna,
embora a princípio óbvio, de fato inevitável ao falarmos do filme
de Christiane Jatahy. Porque Coutinho sempre se pautou por esta
ordenação simples e óbvia: primeiro, exponho as regras, depois
vamos ao filme (metaforicamente falando já que, sim, as regras
são parte do filme). Não se trata aqui, longe disso, de afirmar
que tudo que Coutinho faz precisa ser seguido nem que estará sempre
certo, mas apenas compreender que os motivos dele para esta opção
são exatamente aqueles que expõem os limites de A Falta que
Nos Move: aqui as regras precisam ser expostas só no final
do filme porque, para ele, afirmar o caráter de exercício e de
processo é mais importante do que realmente acreditar que, deste
exercício e deste processo, pode sair algo tão naturalmente potente
que seja mais poderoso do que suas próprias regras, ao ponto mesmo
de independer delas. É aí que a equação se torna cristalina: quando,
em Moscou, Coutinho primeiro expõe regras de um processo
(ainda que um tanto confuso e incerto) e depois mergulha nas cenas,
existe ali a afirmação de como estas cenas existem com força por
si mesmas, capazes de suplantar mesmo as regras ou o processo.
Já A Falta que Nos Move acaba regido pela lógica contrária:
as cenas até podem ser potentes aqui e ali, mas ao fim e ao cabo
o que temos de mais forte, da parte do espectador e do filme,
é o interesse em entender (e explicar) as regras que levaram ao
surgimento destas cenas. Ou seja: o processo é mais importante
que o resultado, que o filme.
É
nesse ponto, mais do que todos, que o filme se revela profundamente
teatral, para além de sua origem ser uma peça (e sua diretora
e atores figuras importantes da cena teatral carioca). Pois não
importa que, em termos de linguagem, haja um esforço considerável
para dar dinamismo ao que se vê, como se justamente nisso se buscasse
fugir de possíveis engessamentos desta matriz teatral – usando,
inclusive e sintomaticamente, verdadeiras autoridades de uma “linguagem
cinematográfica brasileira atual” (nomes como Walter Carvalho
na fotografia ou Sérgio Mekler na edição - e, de fato, o primeiro
e seus câmeras encontram soluções de iluminação e quadro bastante
bonitos, assim como o segundo consegue impor à dinâmica interna
das cenas um ritmo e uma lógica bastante interessantes). Afirmamos
que não importa porque o que há de teatral no filme antecede e
se sobrepõe a qualquer linguagem: é o seu projeto, que perde um
tanto do sentido quando não é mais algo que acontece a
cada noite num palco, como no teatro, mas sim eternizado em apenas
um estado (um “corte”, para sermos técnicos), como exige o cinema.
Eternizar este um corte significará, sempre, que o cinema
continua sendo, queira-se ou não, a arte do diretor: uma onde
pode-se até colocar o ator como parte essencial da sua criação,
para além da sua performance (afirmando, por exemplo, um trabalho
coletivo de escritura de roteiro), mas ainda assim ele, o ator,
não será o dono do poder sobre o discurso - como é no teatro.
Parece muito justo, então, que o momento mais
forte de A Falta que Nos Move seja aquele em que a câmera
recue de sua movimentação constante de cena e se coloque, como
no teatro (clássico), frontalmente à cena, parada, observando
o fenômeno da performance dos atores que choram, dispostos lateralmente,
sentados num sofá. Ali, finalmente, o filme assume, para além
de qualquer exercício e qualquer processo, aquilo que ele pode
afirmar de mais potente - e com o que ele parece brigar ao longo
de toda sua duração: o poder do ator sobre o olhar que se deita
sobre ele. Ali, finalmente, não importa o quanto saibamos que
o choro é colocado em cena para nós, e só para nós (um dos personagens,
exercendo ali o papel de diretor, pede literalmente que todos
se sentem e chorem): ele pode emocionar mesmo assim, porque a
verdade ou não de sua origem é menos importante do que a verdade
da sua existência física, pela encenação e pela atuação. Esta
é a essência do teatro (e, sim, em grande parte do cinema de atores),
e quando A Falta que Nos Move atinge a essência de sua
própria arte, ele finalmente parece tranquilo e vivo. Mas na maior
parte de sua duração ele só transmite mesmo
todo o suor e esforço que se está dispendendo para
tentar criar em tela essa vida e potência que, afinal, nos
melhores casos, não precisa tanto assim de ser teorizada,
exposta ou "metalinguisticada": ela é - ou não.
Setembro
de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
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