sessão cinética
A Enguia (Unagi), de Shohei Imamura (Japão, 1997)
por Luiz Soares Júnior

Depois do trauma

A Enguia talvez seja o filme que melhor sintetiza as duas etapas da carreira de Shohei Imamura. Nos delírios e obsessões que pontuam certos planos do filme, vemos ecos das obras dos anos 60: alegorias exuberantemente estilizadas – com uma diversidade lisérgica de plongées e contra-plonglées, de pontos de vista e de micro-narrativas incrustadas na grande narrativa – que emulam a vitalidade camaleônica de seus personagens em se metamorfosear, se adaptar e sobreviver ao mundo e aos outros. Na concepção formal e tempo cadenciado, pensamos nos filmes feitos após a década de 70, momento em que Imamura se dedicou a fazer documentários que trazem a marca de um distanciamento analítico na descrição dos caracteres e uma maior sobriedade formal. O prólogo expressionista, com direito a um plano subjetivo literalmente manchado de sangue, cede lugar à transparência e a serenidade dos últimos filmes de Imamura: planos longos e gerais, escassez do contracampo, e sobretudo esta precisão lapidar no corte que transforma cada cena num bloco escarpado de registro e observação do modo como os personagens inscrevem no plano seus hábitos, ritmos e manias.

Como Chuva Negra – filme em que Imamura descreve o lento envenenamento de uma comunidade e de uma paisagem ao longo dos anos, pela contaminação radioativa de Hiroshima –, A Enguia é um filme assombrado. Na superfície neutra da dissecação entomologista emergem os signos traumáticos de um passado que funciona como uma espécie de fora de campo para o personagem, encurralando-o sob o império das imagens e dos sons que o aprisionam na inexpugnável fortaleza do crime: o uso recorrente da voz off; o plano obsedante do corpo ensangüentado da esposa; e, finalmente, a figura do duplo, o fantasma encarnado da mulher – Keiko, moça que Yamachita encontra desmaiada na relva, após tentar o suicídio, e a quem salva a vida. São índices deste trauma que permanece encapsulado, desta insistência e resistência dos fantasmas à crônica de costumes, e de atmosferas que o filme tenta representar.

Jean-Marie Samocki escreveu num texto sobre Dario Argento: “(...) o trauma é, antes de tudo, um evento criado pela imagem e que suscita outras imagens. O quadro se torna este espaço que atrai para si todo o campo possível do fílmico (...) um espaço de figuração, ou antes de desfiguração”. Neste sentido, o que temos é, sobretudo, uma trajetória pedagógica: trata-se, para a  vítima do trauma, de aprender a olhar o mundo como se fosse a primeira vez, e não a ver na experiência presente o mero decalque dos fantasmas do passado, uma repetição do infortúnio. Mudando-se para o campo, Yamachita busca recomeçar tudo do zero, ou seja, entrincheirar o olhar no presente absoluto da descoberta: o fascínio e a entrega diante do mundo apenas integralmente presentes na criança ou no animal.

Mas este aprendizado, este recomeçar do zero, demanda uma disciplina, uma integração nos hábitos e nos trabalhos de uma comunidade. Em admiráveis planos de conjunto, Imamura nos mostra que a libertação de Yamachita – ou sua danação – é tarefa a ser empreendida no seio de um grupo; é pondo-se à prova nos consórcios e divórcios de um embate social que o fantasma pode enfim ser exorcizado. Na magnífica cena da briga na barbearia, ficam patentes os riscos de um confronto direto com o espaço gregário até então evitado pelo protagonista, protegido pelo autismo da relação com a enguia. Com um domínio dos deslocamentos no quadro e da dinamicidade no uso da profundidade do campo dignos de um Renoir, Imamura cristaliza nesta cena toda a tensão que mantivera o filme no limiar de uma bomba relógio: o jogo entre a fixidez do quadro e a ronda incessante dos personagens; suas entradas e saídas de campo; ou a contraposição entre um primeiro plano, onde dois entabulam um papo tranqüilo, e o plano de fundo, onde a briga se mantém.

A violência do fantasma de Yamagashi é exorcizada como farsa coletiva, é encenada como vaudeville; e a maestria de Imamura está justamente em demonstrar, na materialidade deste pugilismo entre os personagens e dos personagens contra a rigidez do quadro, que em cinema um ser só se torna plenamente presente – liberto de todos os seus fantasmas, disposto a um novo amor ou uma nova morte – quando se encarna numa ação e numa posição; em um corpo que experimenta a gravidade – o sabor, a textura, o ritmo – da liberdade nesta arena onde se digladiam outros corpos, todos os corpos: o plano.

Abril de 2010

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