in loco - cobertura dos festivais
Adrienn Pál (Pál Adrienn),
de Agnés Kocsis
(Hungria/França/Áustria/Holanda, 2010)
por Fábio Andrade
Espaço afetivo
Em um ano em que os principais prêmios em Cannes foram para
diretores já tidos em alta conta por aqui (Apichatpong
Weerasethakul na competição principal; Hong Sang-soo
- este ano, fora do Festival do Rio - na Un Certain Regard), e
que filmes menos conhecidos, que também foram premiados,
não renderam mais do que bocejos de nossa parte (Os
Lábios, Ano Bissexto), é seguro afirmar que
Adrienn Pál - que levou o prêmio da FIPRESCI
- é a maior revelação vinda de Cannes para
o Festival do Rio. Não exatamente um filme de derrubar
paredes, o segundo longa de Agnés Kocsis mostra que a diretora
não só viu as coisas certas, e entendeu como elas
funcionam, mas também tem um olhar bastante particular
(mesmo que ainda embrionário) que orquestra suas referências.
Grosso
modo, seria possível jogar Adrienn Pál
na mesma sacola de O Errante ou A Mulher sem Piano
- filmes que repisam uma série de referências com
certo entendimento, mas brilho insuficiente ou esporádico.
Mas pouco a pouco percebemos o quanto as convenções
de um certo cinema contemporâneo são curvadas aqui
a um olhar bastante particular, que nunca teme fugir dessas mesmas
convenções, se lhe parecer necessário. Em
primeiríssimo lugar, há uma ausência. Piroska
(Éva Gábor) é enfermeira em uma ala de um
hospital reservada para doentes terminais. Ela passa seu dia observando
dezenas de monitores cardíacos, e corre para socorrer um
paciente sempre que os batimentos começam a rarear. Quando
mais uma velhinha chega ao hospital, Piroska se espanta com o
nome na etiqueta: Adrienn Pál, o mesmo nome de sua melhor
amiga de infância. Surge daí a fagulha necessária
de passado (a infância - idílio que guarda toda a
potência de vida do filme) para conferir algum sentido ao
presente: Piroska tentará reencontrar sua amiga, embora
em dado momento ela mesmo admita não saber o porquê
desta busca ter se tornado tão importante para ela. A ausência
leva à gratuidade. Importa menos o sentido, e mais a fidelidade
à pulsão inexplicável que, mesmo frágil
a qualquer racionalização, leva o sujeito de um
lugar para o outro, de uma conversa à outra. Viver não
é mais que a errância em nome de uma causa inventada.
Mas há vida, de fato! Pois uma das curiosidades maiores
em Adrienn Pál é a maneira como Kocsis
construirá uma Hungria que é um verdadeiro cemitério
a céu aberto, mas que permite pequenos arroubos de vida
e espontaneidade - um deles, envolvendo um par de headphones
de fio curto e um asilo de velhinhos, gera uma das piadas mais
memoráveis do filme, com o uso exemplar
de primeiro e segundo plano que os melhores diretores de comédia
entenderam como ninguém. Mesmo os vivos parecem mortos:
os quadrados empilhados dos monitores cardíacos formam
a mesma composição gráfica das gavetas do
necrotério, dos túmulos verticais no cemitério
e das janelas acessas dos prédios da cidade. Cidade que,
a propósito, será melhor condensada na menina dos
olhos do marido (que, em uma relação tão
burocrática e fria, poderia bem ser apenas irmão)
de Piroska: uma fabulosa maquete que ocupa todo um cômodo
da casa. Em um dos grandes momentos do filme, a câmera faz
um longo travelling sobre a maquete, e termina no rosto
de Piroska. O amor que um dia fora dela está depositado
ali, na inutilidade luminosa daquela falsa cidade - e, por isso
mesmo, a evidência primeira de que o marido de Piroska havia
ido embora é justamente o sumiço da maquete. Em
Adrienn Pál, ocupar espaços é questão
de amor.
Adrienn Pál obrigará Piroska a ocupar a cidade novamente,
e a câmera de Agnés Kocsis não fará
diferente. A necessidade constante da frontalidade não
impedirá que a câmera se ponha em movimento quando
necessário, em longos travellings que esquadrinham
o espaço de maneira não raro impressionante. A procura
detetivesca por Adrienn Pál - o correspondente vivo e enigmático
daquela imagem que definha em uma cama -é também
o impulso do interior para o exterior, o combustível necessário
para tirar a protagonista da inércia assombrada de seu
necrotério particular e devolvê-la à cidade,
ao convívio com mortos de outra natureza. Mesmo que sua
pesquisa à leve, ao fim, de volta para o hospital: por
mais que a resposta esteja ali dentro, em um cômodo de porta
entreaberta ao seu lado, é preciso dar a volta, buscar
algo invisível, sair de sua própria inércia.
Adrienn Pál é, no fim das contas, sinônimo
do próprio filme: apenas um motivo para se ir de um lugar
a outro, e depois retornar.
Agnés
Kocsis tem a consciência aguçada, dos bons ficcionistas,
de que a trajetória pode ser apenas a desculpa para se entreter
em um trabalho de modulação das permanências
(pensemos, aqui, nos diversos filmes de casamento de Ozu). Pois
a cidade é diferente para cada pessoa, assim como a memória
coletiva nunca fecha as contas das dissonâncias das memórias
pessoais - o único sujeito que se lembra de Adrienn Pál
como ela era, com seu mesmo nome, é o que foi apaixonado
por ela. A única memória confiável é
a afetiva; e o afeto é menos o objetivo da busca, e mais
a soma de cada pequena experiência - como a vida é
somente uma sucessão de dias. De todos aqueles encontros
afantasmados, temos uma idéia possível de Adrienn
Pál, como, de cada passo dado na busca, vemos nascer uma
personagem. Na sequência final, Piroska retoma a rotina e
olha para as telas dos mesmos monitores cardíacos, em uma
sinfonia de beeps que vai, aos poucos, sendo harmonizada,
até soar como um único batimento. Da sequência
de aleatoriedades da vida daquelas várias personagens, temos,
ao fim, Adrienn Pál.
Outubro de 2010
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