eletrônica
Imagem-jovem e identidade audiovisual
por Felipe Bragança

Parte 1 - Televisão

 É recorrente na mídia, nas pesquisas sociológicas e na boca de analistas, o discurso que localiza a geração de brasileiros nascida entre 1980 e 1994 como uma geração marcada pela rarefação política e pela pouca capacidade de se indispor diante da normalidade social, estando mais focada em realizações individuais do que em projetos ou ações coletivas. É recorrente também a visão de que a televisão (massificada nos anos 80) e a internet (massificada no começo de 00) estejam diretamente ligadas à construção desse comportamento caracterizado como pacífico, conformado e, não é incomum ouvir, “alienado”. O que pretendo esboçar aqui é uma observação sobre dois objetos audiovisuais de grande relevância no universo juvenil-jovem hoje e suas implicações e possibilidades audiovisuais para além de uma negação pejorativa. Afinal de contas, se essa juventude é “decalcada” e “desenhada” de forma marcante pela TV, de que forma essa mesma multidão interage, reafirma e dialoga com essa difusão de imagens construída para entretê-los, espelhá-los e mimetizá-los?

 Em 1995,estreava na Rede Globo de Televisão a então chamada soap-rap Malhação. Focada em narrativas curtas e num território físico demarcado, a mini-telenovela promovia o encontro entre a dramaturgia do melodrama telenovelístico com o dinamismo dos seriados jovens norte-americanos que marcaram época no Brasil no começo dos anos 90, em especial Barrados no Baile. Em termos de dramaturgia audiovisual, pode-se dizer que não havia um projeto específico em Malhação que não o de promover uma releitura em compasso acelerado das mesmas estruturas dramáticas dos folhetins ditos “adultos”,com a diferença na presença do conceito de “temporada”, em que a série passou a funcionar como uma janela fixa através da qual passavam personagens provisórios. A manutenção do espaço físico da academia/escola como marca identitária do programa fez de seu formato um teatro de repetições, de atualizações, calcado por uma curiosa pedagogia moral e comportamental. O protagonismo do espaço físico e a efemeridade das personagens deixavam claro um projeto de fazer de Malhação um espaço para a filtragem temática e iconográfica desse lugar juvenil-jovem na TV.

Com suas tramas reiterativas de amores impossíveis, vilanias e ingenuidades acopladas por temas de educação sexual e moral, Malhação não se especifica pelo que narra, pelo que trama, mas pelo que permanece imóvel. O dinamismo comumente associado ao lugar do juvenil-jovem se torna em Malhação uma construção cíclica, que, ao contrário de romper barreiras e desviar comportamentos, aparece como estágio (não à toa grande parte do elenco de 15 a 25 anos da Globo tem em Malhação sua “escola”), como degrau comum e estéril para uma “maturidade” unívoca. A fabulação moral em Malhação tem a função educativa de uma cartilha de saúde do corpo e do espírito, onde os ícones de estilo (figurino, gírias) servem apenas como atualizações junto ao “público” (uma mesma massa constituída pela “juventude”) de um comportamento folhetinesco naturalizado pela TV. A opção majoritária da novelinha pela comedia-dramática caracteriza essa intenção de um objeto de entretenimento e metalinguagem identitária: não se tratam de personagens e tramas ali, mas de gestos que representam atos comuns, tipos, e de narrativas que se valem por tocar em interesses pedagogicamente intercalados. A textura jovem da trilha sonora pop-rock, o linguajar aberto a gírias e a faixa etária dos atores constituem não uma diferenciação de linguagem ou dramaturgia, mas uma substituição esquemática em que a gramática da telenovela “adulta” se faz presente em chave rebaixada.

Nas tramas reiteradas de seus protagonistas, não há choques, não há desvios, não há embates que não os dos personagens bons contra os personagens maus – qualquer aspecto político da vida em comunidade é transformado em um teatro de boas e más intenções. Malhação acredita no sossego, na ordem como sinônimo de bondade, como sinal da felicidade final dos protagonistas que a cada ciclo retomam a mesma narrativa, “crescem” e são expelidos para dar lugar a outros iguais.

Mas haveria lugar para uma imagem desviante, retomada no sentido de uma juventude construída como indisposição e irreverência, para um ato de embate por dentro de um projeto de tele-melodramatização da vida? Rebelde estreou há menos de um ano no SBT e em pouco tempo se tornou em fenômeno de audiência e comoção juvenil. Focado no cotidiano de uma escola de alta-classe mexicana, narra as desventuras de um grupo de jovens de classe média que adentram o universo da elite mexicana ao conseguir bolsas de estudo na “Elite Way School”. De começo, pela sinopse, fica marcada a vontade de Rebelde em:

a) trazer ao público médio um sentido de embate entre uma classe média empobrecida (os bons) e uma elite maquiavélica.

b) explorar o comportamento juvenil em sua descoberta de espaço e afirmação

c) construir um tom de sensualidade extremada através de um fetichismo da figura dos colegiais como um ícone da ingenuidade e da perversão.

Ora, ora, ora, uma luz no filme do túnel? Um objeto cultural de indisposição? Vamos por partes: é claro o antagonismo entre os perfis de Malhação e de Rebelde. Enquanto a novela brasileira é baseada no acordo pedagógico, a novela mexicana se caracteriza por explorar um drama carregado que reproduz o típico melodrama social mexicano em chave de high school.  Ao contrário de uma pedagogia, Rebelde traz à tona uma exploração de uma juventude como valor exacerbado na beleza e da alegria, onde o bom-comportamento não é o valor central e a saúde física não é associada a uma dieta cotidiana ordeira – apostando em um elenco uniformizado de colegiais fashion, participações de figuras pop da cena mexicana e uma certa teen exploitation, que, de maneira torta, parece afirmar um raro peso para o lugar da imagem-juvenil na programação de tv no Brasil. Rebelde, focada no embate entre classes dentro da escola e na imagem sexualizada dos protagonistas, ao menos tem conseguido trazer à tona um super-naturalismo de comportamento que não normaliza o comportamento juvenil-jovem, ainda que faça dele um universo uníssono, tipificado em sua celebração. Até mesmo a dublagem em português parece colaborar para que Rebelde apresente um tom plastificado/armado, desenhado para ser uma imitação over do comportamento juvenil e não um projeto de espelho natural.

Enquanto Malhação quer normalizar o jovem rebaixando-o como um sub-protagonista de folhetins, Rebelde os transforma em objeto de valor iconografado (não à toa os personagens centrais fazem sucesso também como uma banda pop), em cores berrantes, como numa vitrine de exposição, como num espetáculo circense. Não é incomum encontrar na internet, flogs e blogs em um embate entre fãs dos dois programas – de um lado Malhação sendo acusada de politicamente correta e almofadinha, de outro Rebelde sendo acusada de ser apelativa e fútil. O que parece estar em jogo é a velha disputa entre o modelo naturalista-pedagógico da teledramaturgia e da programação da Rede Globo e a exploitation mambembe do canal de Silvio Santos. Entre as duas, em faíscas eventuais, algumas questões se elevam e dão sinais de uma afirmação de identidade juvenil-jovem que se reafirma no dilema entre a boa ordem bem sucedida, mas subserviente (Malhação),  e a provocação e o choque via carnavalização da vida (Rebelde).

Haveria uma politização possível nessa bipolaridade? Haveria um desvio possível hoje entre a imagem-jovem do aprendiz de adulto ou do rebelde sem causa?  Mais um estado em ebulição, mais um valor imagético do que um conjunto de atividades contraculturais, mais expansiva do que combativa, a adolescência e a juventude, tais como inventadas hoje, driblam a descrição de eventos e de atos, desprezando-os. Não estão nos eventos nem em contra-eventos as questões. O que narrar então?  Na Parte 2, em breve, vamos aos Giffs, aos blogs e aos flogs. E seguindo.

 



editoria@revistacinetica.com.br

« Volta