ensaios
Do itinerário dos espectros
Adeus ao Sul, de Hou Hsiao-hsien
por Luiz Soares Júnior

"Meus planos são zonas flutuantes; alguns parecem vazios, mas não estão.  (...) Há um paralelo possível com as gravuras chinesas, onde você acha que há espaços vazios...mas estes espaços te levam a transportar o olhar. (...) Concebo meus planos da mesma maneira".
Hou Hsiao-hsien

"(...) Depois, a  pobre criança epilética vai se inclinar a duvidar do conhecimento e da unanimidade de todos os que estão em torno dela; tudo o que é certo vai se tornar suspeito. Vai se inclinar a acreditar (como Sextus Empiricus) que nada realmente existe; de que mesmo que possuísse existência, não poderia ser descrito; e que mesmo que pudesse ser descrito, certamente não poderia ser comunicado ou explicado para os outros".
Paul Virilio, As estéticas da Desaparição.

"(...) nossa vida inteira passa através das propulsões de viagens aceleradas, das quais acabamos por não ter mais consciência. (...) A necessidade de peregrinação levou à consagração da fixidez da vida na marcha do próprio deslocamento"
Gaston Rageot, O homem standard.

Adeus ao SulAdeus ao Sul é um filme no qual a experiência de perda e desvanecimento das aparências, essencial aos filmes de Hou Hsiao-hsien, esposa a lógica estertórica do plano-seqüência. No plano de abertura, vemos Gao, um gângster de pequeno calibre, tentando inutilmente falar ao celular; no plano de fundo, seu irmão mais novo Flat Head e a namorada Pretzel brincam de chamar nossa atenção. Entre o playground lúdico do fundo e a tensão blasé de Gao - óculos escuros e gestos desenvoltos ao lidar com o celular - é instaurada esta dislexia espaço-temporal e afetiva que o filme vai radicalizar.

A câmera está o tempo todo se distanciando e retomando os personagens, mas apenas para reconduzi-los ao mesmo circuito inicial, aos mesmos entrechoques e revezes de uma arena centrípeta: Morituri te salutant. O plano-seqüência em Adeus ao Sul não dinamiza a duração, não rarefaz e diferencia o ponto de vista, não leva a lugar nenhum senão ao porto de partida; ou antes: ao meio do caminho, ao no man's land de uma espectral odisséia da anomia e da exaustão. O filme começa com a partida de um trem - um travelling traseiro que abandona os personagens às anfractuosidades da paisagem -, muitas vezes deixa-nos para trás em plena diegese para se saturar do metano envenenado destes tempos mortos nos quais as seqüências se extraviam, e termina num carro atolado no meio do nada, na distância ominosa de um plano geral que se acumplicia ao travelling "retro escavadeira" do início: "(...) Um movimento alternadamente visível, invisível, perceptível, imperceptível" (Jacques Morice) que materializa o modular desaparecimento do sujeito da cena, sua absorção pelo espaço-tempo; tão perto, tão longe, em retração e expansão, flutuando na zona agora indistinta entre percepção e memória, espaços virtuais e atuais; a coalescência do plano e  a disjunção narrativa instauram uma Memória e uma percepção "que não posso chamar de minha", impessoal, futura do pretérito ou, na bela expressão de Morice, "como pressentimentos de futuras memórias".

Emmanuel Burdeau escreve que a H(h)istória no cinema de Hou não nos é representada através de uma rememoração ativa por parte dos personagens, de uma experiência (portanto, interdição do flashback); pois estes são progressivamente deslocados e infiltrados pelos fluxos temporais e pela trajetória da luz, são catapultados para longe do centro da cena; é "o conjunto dos planos, seu movimento e variação", estigma contrapuntístico da alienação, que se encarrega de delinear o percurso de uma H(h)istória. Em Adeus ao Sul, temos a versão maníaco-depressiva deste magma energético de des-subjetivação que percorre o seu cinema.

Adeus ao SulA vertiginosa diversidade de décors e fluxos registrada em Adeus ao Sul obedece a um mecanismo paradoxal: esta progressão irresistível de tudo e de todos, esta fluidez e contigüidade ex-tática do movimento servem a um imobilismo trágico, a um "beco sem saída" que necrosa o arcabouço do filme. Na terceira sequência, Gao fala para a namorada que pretende "ampliar os negócios", abrir uma casa de games na cidade. Mas adverte, com um ar taciturno: Este será o canto do cisne, o ponto final. Este horizonte de deadline - esta iminência de dissolução, de ponto fatal e final - alicerça uma série de estratégias que estruturam Adeus ao Sul como um caleidoscópio do Mesmo, uma infernal proliferação de figuras girando sobre o vazio: a repetição das cenas, encadeada com a meticulosa complacência de um drogado para com seu próprios fantasmas - os mesmos anódinos rituais, as mesmas performances de beira de calçada, os mesmos lances que jamais n'aboliront le hasard: brigas de bar, jogatina, quebradeiras de copa e cozinha; o beat alucinógeno de algumas seqüências – o passeio de moto, os pontos de vista subjetivos do garçom no restaurante e do painel do carro - que com um clin d'oeil integram (e anulam) os personagens ao campo fantasmagórico do filme (os planos de ponto de vista não se inserem num plano versus contraplano, eles só são revelados como pertencentes a um personagem depois de algum tempo); o dínamo emperrado do tempo, transformando os personagens em nômades domésticos: bebem, fodem, dormem, às vezes ao mesmo tempo, às vezes sem perder tempo, muitas vezes na sarjeta do tempo, sonâmbulos, cortejando o abismo a cada trago ou aposta.

A rigor, não há ação neste filme de gângsteres; o que temos é a descrição de uma série de rituais; ou de estados - solilóquios, vetores de vertigem e inação (a corrida entre motos, as conversas lowprofile no bar, com os cachorros em primeiro plano); intensidades (o crescendo de um jogo de cartas que degenera em briga com Flat Head, as panorâmicas documentais sobre a atividade noturna dos gângsteres, "preparando" um desenlace sangrento que nunca vem). Espaço, tempo, quadro, luzes e sombras: categorias transcendentais do cinema (transcendentais, não transcendentes: condições que possibilitam que um determinado objeto se manifeste ao sujeito). É interessante como o cinema de Hou, a rigor quase estruturalista em seu esquematismo fantasmagórico, consegue-nos transmitir ao mesmo tempo - e em um mesmo e contínuo movimento, realizando tardiamente uma espécie de ideal de totalidade do cinema moderno, como apontado por Lourcelles, mesmo que totalidade entrecortada, esquizo - uma orgânica intensidade material em seus detalhes.

Adeus ao SulKent Jones: "Quase todo plano de Hou possui um exuberante ordenamento de luzes e dimensões, ângulos sinuosos e crostas de cor ou escuridão onde o olho mergulha, espaços semi-definidos. Em seus últimos filmes, a concentração destes elementos induz a uma forma de delírio". O estoicismo cínico de Gao, a leviandade histérica de Pletzer, a petulância neurastênica de Flat Head possuem um relevo de bico-de-pena, por exemplo na cena da briga dos dois irmãos no quarto; ao fundo, o rapaz , encostado à parede, sofre um esporro de Gao, que vai e vem do primeiro ao último plano, disseminando à sua passagem o vibratto de seu mau-humor, que repercute sobre os outros personagens. Em primeiro plano, sua namorada, Madonnina da sarjeta, sentada na cama, conta os piolhos, indecisa se dá ou desce. Pretzer bate os punhos contra a parede, enquanto o namorado se joga da janela no primeiro andar ao fundo. A repartição dos atores no espaço vertical, o tempo moderato com que se distribuem os diferentes registros (fúria, impassibilidade, crise histérica), recortados finamente contra a superfície que litiga as figuras e o fundo, transformam o plano num triângulo dramático e deontológico - com os agentes e os reagentes do poder, Gao, as duas mulheres e o irmão - triângulo onde cada vértice se destaca de forma inigualável; postural, gestual, rítmica. Adeus ao Sul, aliás, é um filme com um tal gênio coreográfico que desmente totalmente o preconceito de que formalismo e olhar ontológico - ainda e sempre: Méliès, Lumière, mise en scène versus abertura fenomenológica - não se misturam. Na cena da briga de Flat, nas perambulações de carro, no restaurante, na bebemoração, nas bifurcações de um plano-magma que abriga uma pluralidade de dimensões - constantemente escarpando-se e retroagindo-se - percebemos a esgrima que consiste nesta orquestração da nota casual na partitura sinfônica, como a presença lapidar do argot em certas réplicas de Courtelin.

Todo pintor - de Giotto a Cézanne, de Rembrandt a Bonnard - sabe que a representação é questão de luz e de sombra, não de linha ou de perspectiva: de volume e de textura, matéria e forma. É o domínio classicista do contraponto dramático e da inervação litúrgica da atmosfera que dá ao cinema de Hou esta aura de limbo: de ser um cinema fronteiriço, a meio caminho entre o interior e o exterior, o visível e o invisível (Burdeau: "(...) tudo o que é visível se encontra no limiar onde o que nos é mostrado se sobrepõe ao que não nos é mostrado"). É a luz e a sombra que engendram ser - e ser é figura, eidos, determinação de um ente em seus limites; mas a luz e a sombra, ao gerar ser,  necessariamente o rasuram com as crateras, as vacilações, as cicatrizes do infigurável, do numinoso: pois toda obra consiste num recorte sobre a matéria, uma subtração ao possível e ao virtual, que agora se atualiza, e consigna em sua emergência os rastros do que deixou para trás. (Jean Beaufret). No cinema, temos o fora de quadro (imantação, reverberação) e de campo (contexto, sub-texto), estes avatares do "infigurável", sem os quais é impossível pensar qualquer projeto de delimitação e orientação do olhar.

Adeus ao SulHá uma verdadeira metafísica do fora do quadro no cinema de Hou, que aparece em Adeus ao Sul de forma paradigmática: é um filme sobre um bando precário de arrivistas que querem mudar de vida, mas que só o podem fazer radicalizando - apostando tudo - os pobres meios de que dispõem para sobreviver: há uma aposta no Nada (un coup de dés) que pode levar a um novo estágio ou à destruição, à Transfiguração ou à Danação (ou pior que isso: à entropia, ao beco sem saída existencial e narrativo, como aqui). Esta metafísica dos espaços invertebrados se alimenta de uma integração do fora de quadro e da dimensão suplementar de presença que este entesoura para o quadro através de signos negativos, como o uso da voz off, os pontos de vista "alienígenas" (o painel do carro, os óculos no restaurante, a namorada de Gao observando-o por uma lupa), ou a alternância entre plano seqüência e plano fixo, que dá ao filme uma modulação em stacatto: o fora de quadro não apenas espreita o campo, mas o erode; apresenta-se nele, mesmo que de forma subserviente, sob a égide do vestígio ou da anamorfose (os pontos de vista "expressionistas").

Esta relação que Hou estabelece entre o Fora e o Dentro - o Fora de quadro e o Quadro, a Figura e o Fundo que a suscita e, em um mesmo movimento, a dilapida - é uma interpretação bem particular do que, para Alain Badiou (e Godard), consiste na démarche do cinema contemporâneo. Este cinema tem interesse menos em circunscrever e representar as coisas - o mundo, na concepção clássica da tela de cinema como uma "janela para o mundo" - do que os espaços entre as coisas, o que as diferencia e as leva a coabitarem. O inter. No cinema de Hou, a subjetividade é o limiar - mais do que um adjetivo, este é um arché que estrutura um cinema de rapto e ruptura do olhar - de um aventuresco panorama.

Há um filósofo japonês, Keiji Nishitani, que chama nossa atenção para um princípio fundamental na representação oriental, o sünyata, que poderia ser traduzido por "vazio", "impermanência radical". É uma perspectiva a partir da qual o eixo da representação se desloca do oposição sujeito-objeto - e do tipo de campo que se define a partir desta orientação - e passa a se inscrever no quadrante aleatório de uma tridimensionalidade que situa o sujeito (e o objeto) em relação ao mundo, ou o grau zero da representação, sünyata. O modelo de que Nishitani se serve para o seu insight de descentramento do cânon perspectivista ocidental são as paisagens desenhadas por Sesshü, gravurista do século 15. Escreve Nishitani: "(...) a presença de um objeto pode ser definida apenas em termos negativos. Já que não há uma maneira de representar um objeto x sem ao mesmo tempo incluí-lo no esquema global de transformações, o que nos aparece como o objeto x é apenas a diferença entre x e o meio total onde este se insere. Já que os eixos dos objetos se encontram em contínua mobilidade, objetos individuais são constituídos apenas por diferença, espacial e temporal (deságio temporal) também. O ser, neste sentido, nunca chega até nós, nunca pode ser representado, a não ser negativamente, como diferença em relação aos estados de coisas onde estes se situam. A forma da semente já está tomando a forma da flor, e a flor já está se tornando poeira. O estado presente do objeto que nos aparece como flor é ao mesmo tempo habitado pelo seu passado - como semente - e pelo seu futuro - como poeira, em uma contínua mobilidade de postergação, cujo efeito consiste em que a flor nunca está presentemente , assim como nem a semente nem a poeira estão lá. (...) O ser é interpenetrado pelo que não é: pelo que já não é e pelo que ainda não é. O que significa que as coisas para o homem existem da forma como existem, ou seja, sob o modo da negatividade constitutiva ou do vazio, sünyata". 

Não é esta rotatividade transitiva, descrita por Nishitani - ainda não, não mais - que reside no centro excentrado de um filme como Adeus ao Sul? E que dá à obra-prima de Hou Hsiao-hsien esta textura caduca de uma réussite que só existe na memória (como memória) e na intenção daqueles que um dia a ousaram sonhar?

Junho de 2011

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