sessão cinética
Acossado (À bout de souffle),
de Jean-Luc Godard (França, 1960)
por Juliano Gomes

AcossadoTudo é cinema

A expressão "filme de estréia" acaba sendo bem pouco precisa, ou no mínimo traz muito pouca luz sobre o fenômeno chamado Acossado. O projeto de cinema de Godard dá claros sinais de já estar pronto àquele momento. Seus alvos estão bem definidos, assim como suas relações com uma idéia de história e de presente muito específicas. Uma história do cinema que está sendo reescrita por Godard e seus pares, em torno do grupo dos Cahiers, talvez pela primeira vez, principalmente com os filmes americanos que chegam à França no pós-Guerra. E um presente de um país que vive uma explosão de consumo, de liberalidade, publicidade e de uma nova cultura jovem.

É bastante claro o choque destes dois eixos fundamentais em Acossado. É a partir deles que Godard extrai sua matéria-prima. Porém, ainda impressiona a sua capacidade de transcender esses elementos e reconfigurá-los ao ponto de abrir novas condições de possibilidade para o cinema naquele momento e ressoar ainda hoje. Trata-se de um filme que, bem pouco tempo após Os Incompreendidos (François Truffaut) e Hiroshima, mon amour (Alain Resnais), consegue novamente ampliar o escopo do que se pode chamar cinema. No momento em que os limites dessa arte haviam sido muito recentemente alargados com violência, Godard produz uma obra cuja falta de reverência a qualquer valor consolidado atinge mesmo esses marcos recém-estabelecidos da época.

AcossadoTalvez a adição fundamental ao magma cultural de onde Acossado nasce seja justamente a obra de um outro francês, Jean Rouch. Dali, Godard retira uma postura altamente anárquica, e uma forma de filmar e montar absolutamente porosa, onde o mundo parece invadir a imagem por vários lados. Seu filme quase se chamou Eu, um Branco, numa alusão direta a Eu, um Negro de Rouch, porque há neste segundo uma grande parcela de descontrole e indecidibilidade que parece caber perfeitamente no projeto de Godard e que habita seu cinema até os dias de hoje. A estrutura rouchiana de incorporação de signos quaisquer a partir de seus personagens, e a aposta numa profundidade da exterioridade - isto é, num investimento intenso em mostrar o que não se é, o que se deseja ser, e afinal, o que se pode ser - tornam este cinema uma máquina poderosa e destruidora (inclusive de si mesmo. Trata-se claramente de um filme suicida. É como diz o escritor interpretado Jean Pierre Melville: "meu sonho é ser imortal e morrer logo depois").

A grande realização do fotógrafo Raoul Coutard na ampliação da possibilidade de trânsito entre exterior e interior é fundamental no sentido de estabelecer um paradigma de câmbio incessante entre essas duas idéias na maneira como os personagens - e o filme - se constituem. Este é acima de tudo um filme de trânsito: movimento incessante (mesmo em espaços mínimos), carros, e a absoluta falta de solidez na constituição dos personagens. A regra é mudar sempre: de opinião, de humor, de tom de voz, de cara, de iluminação. A luz virá sempre do exterior. Os slogans publicitários invadem as falas. Pinturas de Renoir, Picasso, as salas. A personagem de Jean Seberg, Patrícia, olha para Michel (Jean Paul Belmondo) e diz que olha para ele, para seu rosto, fixamente, pensando o que haverá atrás de sua face, mas ela não vê nada. É exatamente isso. Não há nada para ver dentro. Seguindo os ensinamentos de Melville, Bresson e Tati, Godard vai investir nas infinitas possibilidades do exterior. A alma, a essência, o divino em nós, morreu. O que se pode fazer é misturar-nos às coisas e nos tornarmos elas, e assim indefinidamente. Cria-se aqui uma forma indefinida, com grandes cenas, como a do apartamento de Patrícia que dura por volta de vinte minutos, sucedidas por pequenos trechos que acabam sem motivo aparente, numa estruturação desengonçada, indecisa, deambulante.

AcossadoA política de autor em Godard é justamente mais "política" do que "autoral". Seu primeiro longa mostra uma espécie de anti-autor, alguém que aparenta não ter nada a dizer, num filme onde tudo parece poder entrar, onde se pode dizer tudo e ver tudo. Acossado é um organismo mutante: francês, americano, noir, burlesco, trágico, abstrato, erótico, idiota, intelectual, bruto, dialético e lírico. Sua unidade é justamente a possibilidade de diferença permanente que ele abre, e daí que advém sua imortalidade como obra. Arte como colagem, como jogo de espelhos, como na cenas com Humphrey Bogart e a tela de Auguste Renoir. A originalidade aqui é justamente aquela da cópia da cópia da cópia – infiel cópia que não respeita suas matrizes no sentido de canoniza-las, mas as cultua verdadeiramente, pois as coloca como objeto atuante de pensamento, no presente. O jogo aqui é sempre poder tornar outro o que for, um desfile de alteridades, uma máquina de diferença, dos espaços, dos idiomas, dos nomes, dos sons, das vozes. Acossado é quase um estado, que parece poder se propagar indefinidamente - e assim o faz, por toda a obra de Godard, tomando várias caras, e por isso continuando sempre a mesma.

Junho de 2011

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