in loco - cobertura dos festivais
A Coleção Invisível, de Bernard Attal (Brasil, 2012)
por Pedro Henrique Ferreira
Incômodo
inventado
Quando Beto (Vladimir Brichta) presenteia o menino que vive
no vilarejo no interior da Bahia com um iPod na última
cena de A Coleção Invisível, está
em jogo mais do que uma forma de resolver o drama e representar
um carinho que o “playboy” teria criado por aquele
lugar. O que vemos é também o apontamento de um
problema histórico da arte brasileira em busca de sua origem
no interior do país, e que se apresenta como o principal
conflito deste primeira longa-metragem de ficção
de Bernard Attal (inspirado em um conto homônimo de Stefan
Zweig). Este ato final tem um quê de redentor para ambos
os lados – para Beto, que se resolve com sua revolta interna,
e para o menino, que ganhou um iPod. Mas por que é que
ele quereria um iPod?
O desenho desta relação campo-cidade é feito desde o começo, quando para quitar uma dívida de sua loja de antiguidades, o rapaz da cidade vai ao interior atrás de uma coleção de gravuras valiosas. A motivação inicial é a de retirar, de levar embora. É a razão pela qual a família do fazendeiro que tem as gravuras faz de tudo para evitar o encontro. Em uma relação social-metafórica da mesma situação, árvores estão sendo derrubadas na região. É o avanço do moderno sobre a tradição do vilarejo. Mas quando o playboy de São Paulo finalmente consegue chegar até Samir (Walmor Chagas), descobre que ele é cego, e que a tal coleção, tal qual o título sugere, é invisível: um bocado de papéis brancos que Samir trata com a maior delicadeza. A constatação é peremptória: não há nada de realmente valoroso naquele lugar. Se algum dia houve tradição, ela já foi perdida, e agora é tão somente uma ilusão que deixa um velho cego feliz.
A
única coisa valiosa que Beto encontra é o amor pela
filha (Ludmila Rosa) de Samir e a amizade com o menino que o ajuda
nas ruas. Mas dada a má elaboração dos personagens
na narrativa, e o fraco trabalho de dramaturgia decorrente, não
fica claro o quê e como este amor acontece, e sobretudo,
o quanto ele realmente tem de valor. Talvez não tenha valor
algum também, porque Beto vai embora e deixa os dois no
mesmo lugar. Ou talvez a despreocupação em lidar
mais abertamente com os dramas de Beto (com seu pai, sua mãe,
seus amigos falecidos e sua revolta) seja um espelho do quão
mais importante é para A Coleção Invisível
a lição que o herói recebe. Ela está
formulada nos travellings de chegada e partida que observam
a cidade por um taxi, num primeiro momento, vendo o lugar como
uma relíquia, e no segundo, como um nada abandonado. Ou
seja, o playboy vai até lá procurando levar algo
embora, não encontra nada, e por pena (ou remorso), acaba
deixando algo para trás – o seu iPod.
Ir
da cidade para o campo é, na tradição da
cultura brasileira, um regresso, um retorno às origens
quando os desrumos tomados parecem não ter desabrochado.
Em uma crítica a Histórias que Só Existem
Quando Lembradas aqui na Cinética, Thiago Brito escreve
que “se a cidade grande se tornou sufocante, uma mixórdia
indistinta de referências e signos, e sua opulência,
mais do que criar uma diversidade de vielas, abarrotam ou bloqueiam
a vista, a ‘fuga’ para um interior cada vez mais interior,
mais recluso e esquecido, aparece como um horizonte em branco”.
A Coleção Invisível caminha na mão
diametralmente oposta do campo como tábula rasa. Não
há o interesse em seu ritmo, regime de luz ou seus habitantes.
Ele é um lugar já apoderado, porém pobre
- de quartos sujos, taxis ruins e sem água – sem
encanto algum - ou no máximo um encanto inventado que só
serve mesmo para enganar um velho cego. O playboy compraz com
a mentira, aceita fazer parte dela. A sua revolta, cujas raízes
não ficam claras - mas que é de se supor ter algo
haver com a tal mixórdia da cidade - é apaziguada
por este encontro. Sente pena (ou remorso), dá de presente
o seu iPod, e vai embora.
Há uma certa covardia em A Coleção Invisível ao preferir não deixar claro os contornos da sua conturbada figura central – sua relação com os amigos, com os pais, com o vilarejo, com a filha de Samir, ou com a cidade. É bem possível que isto aconteça porque o incômodo interno que persegue este playboy talvez seja tão inventado ou mais do que a coleção do velho fazendeiro. E é mais fácil (mas também mais covarde) que seja assim. Fica mais fácil fazer a mea-culpa heróica e deixar o iPod no final das contas, este presente que é também uma esmola, um carinho que é também uma violência, o brinquedo mais moderno nas mãos de quem nunca o quis. E ir embora, como se tudo lá já estivesse mesmo enterrado e resolvido.
Outubro de 2012
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