A Árvore da Vida (The Tree of Life),
de Terrence Malick (EUA, 2011)
por Fábio Andrade
Pedra nos sapatos
Para melhor se aproximar de A Árvore da Vida, ou de toda a obra de Terrence Malick, talvez seja necessário voltar a referências que antecedem o seu trabalho no cinema, quando ele se dedicava a estudar e traduzir para o inglês trabalhos do filósofo alemão Martin Heidegger. Em A Origem da Obra de Arte, Heidegger cria um exemplo bastante didático do potencial filosófico daarte, a partir de uma obra amplamente conhecida: Um Par de Sapatos, de Van Gogh (foto). Para Heidegger, o quadro era exemplar pois, a partir de um objeto concreto e mundano, apresentado de uma maneira bastante específica, o artista consegue disparar uma série de processos de pensamento em quem tem contato com a obra: não é tão somente um sapato, mas um sapato camponês, que traz em si o peso do trabalho, a sujeira proveniente do uso diário, e, consequentemente, uma relação de classe, de cenário, de tempo, de paisagem que ajuda a definir aquele objeto. Não é, portanto, tão somente um sapato, mas uma representação de um sapato, que carrega, consigo, um mundo.
Não é absurdo dizer que essa percepção
de Heidegger está, de fato, na raiz de toda representação
- incluindo, aí, boa parte do cinema. Mas, no trabalho
de Terrence Malick, é possível perceber que isso
não é simplesmente algo intrínseco, mas de
fato um ponto de partida consciente para se criar imagens que
almejam e remontam essa excelência representacional que
Heidegger definia como uma aspiração da arte. Esse
processo está mais visível no jogo entre imagem
e voice over de Além da Linha Vermelha:
junto a nós, o narrador observa o rosto de um soldado japonês
morto enterrado no solo, e aquela imagem lhe suscita pensamentos
e ruminações que chegam ao espectador pelo texto
da narração. É como se Malick criasse a imagem
e, junto dela, expusesse o processo de pensamento que ela dispara
em quem a observa.
A
Árvore da Vida usa estratégia parecida, mas
que aqui é combinada a uma abordagem formal e estrutural
em um primeiro momento bastante impressionante. Experiência
sem paralelos claros na história, A Árvore da
Vida vem com a marca dos filmes malditos que abrem novas
possibilidades para o cinema que parecem impossíveis de
serem levadas adiante (Aurora, de Murnau; Limite,
de Mário Peixoto; os filmes de Leos Carax), decupado, filmado
e montado a partir de uma língua absolutamente própria,
fazendo uma combinação bastante surpreendente da
apreensão dos entusiasmos da vida de um Dziga Vertov com
uma vontade bastante clara de se construir personagens e contar
uma história, mesmo que de forma essencialmente lacunar.
Terrence Malick não só busca imagens "definitivas"
para tudo que filma, como coloca esse definitivo em choque com
uma estrutura que torna tudo fugidio. A Árvore da Vida
combina as elipses violentas de Terra de Ninguém
com os planos "resumos de mundo" de Days of Heaven,
aqui marcados por enquadramentos absolutamente vertiginosos, cortes
arriscadíssimos e uma decupagem circular, que cisca em
torno dos momentos narrados pelo filme, construindo não
exatamente uma narrativa, mas um mosaico de impressões
de vida. Em A Árvore da Vida, há falas,
não diálogos.
Mas talvez o maior desafio de Malick com esse filme seja justamente
o de aliar essa potência do fluxo das imagens e da vida
com o desejo heideggeriano de criar cada pequeníssimo
plano como um novo Sapatos, de Van Gogh. Todo plano no
filme almeja ser a representação definitiva de um
sentimento de mundo que recobra origens específicas - a
graça e a natureza, conceitua a voice over logo
no começo do filme - e uma sensação de que
a história pessoal pertence e dá continuidade a
uma história do universo. Não há dúvidas,
portanto, que A Árvore da Vida é um filme
de ambições monumentais, relacionando - sem constrangimento,
mas de forma nem sempre habilidosa - a rotina de uma família
americana na década de 50 (que, como todas as famílias
de Malick, arquetipiza o norte-americano original, com a coloração
amish dos cabelos de Jessica Chastain e os cabelos com
corte de soldado de Brad Pitt e seus filhos) com a origem do mundo
e da vida na Terra. Cada imagem de vivência familiar em
A Árvore da Vida vem imantada pela ambição
de se conectar ao princípio da vida em si, com uma abordagem
do tempo e do espaço que é tão física
(dos dinossauros aos garotos americanos, as personagens vivem
uma rotina de dominação, e carregam no corpo as
marcas dessa vivência, como os sapatos camponeses levam
consigo o seu uso) quanto evocativa: na obra de arte, os sapatos
são, sem dúvida, um par de sapatos; mas só
há obra de arte se eles não forem somente
um par de sapatos.
Se
esse desejo de representação ainda parece encontrar
sua melhor forma em Terra de Ninguém, os motivos
ficam claros em A Árvore da Vida: no filme de
1973, o poder individual de cada imagem era chocado violentamente
a uma narrativa rasteira e direta, encontrando em personagens
tão críveis quanto desregrados uma clareira para
o pensamento. Em A Árvore da Vida, os efeitos
se diluem justamente na monumentalidade de suas ambições,
pela necessidade de dar representação "literal"
ao que não pode ser representado literalmente. Daí
que, apesar de o filme ser uma experiência bastante intensa
para qualquer pessoa interessada em cinema, seu fracasso em dar
conta de si mesmo é também decorrente de sua originalidade
formal. Pois a natureza circular que permite que o filme seja
um experiência tão única é a mesma
que o faz criar toneladas de imagens para representar os mesmos
sentimentos, montando teses complicadíssimas para tentar
dar conta do que há de mais simples. Daí que evocações
tão fortes quanto a do pai que, após a morte do
filho, se arrepende por ter brigado com ele pela maneira atrapalhada
com que ele virava as folhas da partitura de piano, sejam
dizimadas pelas horas de reiteração da relação
opressiva do pai com o filho, tentando cristalizar o que é
necessariamente fugidio.
Mas mais do que pecar por uma simples reiteração,
o problema mais grave de A Árvore da Vida é
que, embora todos os seus planos tenham ambições
de serem Sapatos, poucos realmente o são. Pois
se é necessário mergulhar nas profundezas do quadro
de Van Gogh para extrair seu sentido, em A Árvore da
Vida a agilidade de suas epifanias (não é descabido
pensar no cinema de Jonas Mekas, com a diferença que Mekas
produz esse sentimento de mundo sem filmá-lo como uma tese)
depende de sentidos que estão muito à flor da representação,
nas
camadas mais superficiais de cada plano. Nesses momentos, o filme
se aproxima demais da mais asquerosa publicidade, reiterando na
imagem paralelos e processos mentais que já existem na
relação com o espectador. Quando há a necessidade
constante de uma representação perfeitamente apreensível
(e o excesso de perfeição em cada plano é
o que faz de A Árvore da Vida o filme mais imperfeito
de toda a carreira de Malick), é inevitável resvalar
nas tentações do didatismo e das simplificações.
Se a casa é um útero e o nascimento é uma
benção da natureza, por que não representar
um parto logo por uma casa dentro de um lago, que cospe o protagonista
pela porta da frente? Se um homem faz as pazes com sua história,
por que não dobrar o tempo e colocar todos os personagens
caminhando em uma praia, fazendo carinhos fantasmas na cabeça
do protagonista? Se há uma passagem espiritual a se fazer,
por que não colocar o protagonista atravessando uma porta
no meio de uma paisagem sem paredes?
A resposta que parece faltar a Malick em grande parte de A
Árvore da Vida é: porque representações
dessa "facilidade" já não dizem mais absolutamente
nada. As mensagens são transmitidas com presteza, mas a
força artística nunca dependeu da presteza para
transmitir coisa alguma. Não é à toa que
os grandes momentos de A Árvore da Vida - e não
há dúvida que eles existem - sejam aqueles que parecem,
e apenas parecem, menos preocupados em dizer claramente alguma
coisa. São momentos em que a materialidade bruta da representação
evoca sentidos e sensações; mas esses sentidos provêm
dessa representação, eles não são
representados
por ela. O sentimento brutal e imemorial de pertencimento (à
natureza, à humanidade, à história) é
muito mais fortemente presente em uma cena de crianças
que se divertem com o caminhão do fumacê do que nas
sequências longuíssimas dos ícones mais desgastados
da origem do mundo, com vulcões em erupção
e Big Bangs em CGI. A Árvore da Vida
está cheio demais de Big Bangs - de origens, de
processos, de consequências, de sentidos - para que possamos,
de fato, nos perder em sua fumaça. Troca-se a pintura de
um sapato capaz de carregar um mundo por um mundo que parece apenas
a pintura de um sapato - exatamente o tipo de banalização
que faz da publicidade um meio de comunicação tão
indistinto e eficaz. E é neste tipo de procedimento - pesadas
cortinas que por vezes se abrem e permitem breves vislumbres de
maravilhamento - que A Árvore da Vida sai da vertigem
extasiada de quem gira incessantemente em círculos, feito
uma criança que se deleita com o torpor de seu próprio
movimento, e passa a de fato girar em falso, espanando seus próprios
encaixes, banalizando suas maiores conquistas.
Agosto de 2011
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