A Alegria, de Felipe Bragança
e Marina Meliande
(Brasil, 2010)
por Fábio
Andrade
Faz
de conta
Não há dúvidas que o nome de Apichatpong
Weerasethakul será mencionado, mais a torto do que a direito,
sempre que se ouvir falar em A Alegria. Não é
por menos: além de incluírem o realizador tailandês
em seus agradecimentos especiais nos créditos finais do
filme, os diretores criam cenas à beira do rio que fazem
lembrar as de Blissfully Yours, embrenham-se em uma floresta
à Mal dos Trópicos, e ainda enchem o filme
de travellings acompanhados de drone music que
resgatam uma das principais marcas de estilo de Apichatpong. Da
mesma maneira, A Alegria traz também referências
mais discretas a M. Night Shyamalan (há cenas que lembram
A Dama na Água e um monstro marinho que fala a
mesma língua do ET de Sinais) e Tsai Ming-liang
(a jaca é filmada como um equivalente brasileiro das comidas
exóticas que vemos em Goodbye Dragon-Inn e O
Sabor da Melancia, por exemplo).
O problema nessas três matrizes está justamente na
tentativa de conciliação do inconciliável:
Shyamalan e Tsai Ming-liang são cineastas de representação
clássica, praticando exatamente a organização
artística que Apichatpong Weerasethakul abole em seus filmes,
na justa atitude que os torna tão originais. Filmes como
Sinais ou O Sabor da Melancia são sistemas
simbólicos fechados, mais herméticos no caso de
Tsai (mas que se abre facilmente uma vez que o espectador percebe
o que cada objeto de cena simboliza dentro desse sistema), mas
igualmente sistemáticos em Shyamalan (lembremos como as
peças se encaixam ao final de Sinais, e como cada
elemento narrativo tem função precisa para se chegar
ao desfecho). Em Síndromes e um Século,
ou qualquer outro filme de Apichatpong, temos o exato reverso:
os signos não se atrelam a significados específicos,
transformando-se dentro de uma mesma cena e criando um sistema
simbólico sempre fluido, mais calcado na relação
entre os signos do que na articulação dos significados.
Que
Felipe Bragança e Marina Meliande misturem referências
de procedimentos antagônicos é menos um problema
em si, e mais um sintoma das fragilidades de A Alegria:
há pretensão de profundidade em uma adesão
que é, no fundo, puramente superficial. Trocam-se monges
budistas por bate-bolas, melancias por jacas, tigres por monstros
marinhos, mas não se leva das matrizes o que elas têm
de significativo por trás da aparência. Apichatpong
é resgatado somente por sua estranheza, mas em A Alegria
ela é reduzida ao quirky, sem qualquer traço
de desestabilização ou violência.
Pois se há algo de realmente extraordinário no cinema
de Apichatpong Weerasethakul é a maneira como ele usa esses
mesmos signos para dar cabo a processos muito mais profundos:
não só filmar uma transformação de
homem em tigre, mas promover essa mesma mudança na própria
forma do filme, na maneira como um signo reaparece completamente
re-significado em pontos diferentes de uma mesma história,
e de que uma perna protética passa a ser um lugar para
se guardar uma garrafa de bebida, sem nunca deixar de ser uma
prótese. Uma história de amor pode se tornar uma
história de horror; um bucólico conto religioso
se transforma em ficção científica; um boy
meets girl à beira do rio se revela uma jornada sensorial,
filmando o tato infilmável, o toque e sua consequência.
Em A Alegria, a relação com o cinema de
Apichatpong Weerasethakul é ironicamente iconográfica;
irônica justamente por se tratar de um diretor que
rechaça fortemente a estaticidade que transforma os signos
em ícones. Tudo é fluido no cinema de Apichatpong;
não há citação possível. A
Alegria, porém, se quer primo-próximo de Mal
dos Trópicos, mas também filme de super-heróis,
o mais iconográfico dos gêneros.
Mas não é pelas citações
a Apichatpong Weerasethakul - voluntárias dentro do filme
e que confundirão os olhares mais superficiais - soarem
equivocadas que A Alegria é um filme problemático.
É apenas necessário afirmar o que ele não
é, embora faça parecer ser, para se chegar ao filme
com os olhos limpos das filiações cinéfilas
apressadas. A Alegria leva adiante o mesmo olhar dedicado
ao universo adolescente no coletivo Desassossego, apresentando
diversos dos mesmos problemas, e algumas virtudes que o superam.
Os traços de estilo permanecem - o mesmo gosto pelo jogo
de palavras; as atuações posadas; o trabalho de
reapropriação de gênero; o encontro do cotidiano
com a possibilidade de extravasá-lo no fantástico
- e são ostentados de forma a gerar todo tipo de implicância.
A implicância, porém, interessa muito pouco como
crítica.
Felipe
Bragança e Marina Meliande aprofundam seu mergulho em um
imaginário afetivo carioca bastante conectado à
sensibilidade de parte do Rio de Janeiro (cidade na qual o filme
é situado literal e imageticamente), com sua latência
rosada, sua fala mansa sua eterna vontade de potência. A
questão é menos a de se acreditar ou não
nesse mergulho, e mais de questionar o próprio impulso:
quando não há possibilidade de violência,
é possível haver arte? Os jovens de A Alegria
sorriem, mas não riem; sangram, mas não se machucam;
dançam sempre de olhos abertos; falam baixinho e sem qualquer
modulação, amando e odiando como zumbis. O que falta,
porém, é justamente a distância crítica
do gesto artístico: A Alegria não se permite
irromper em berros, como A Fuga da Mulher-Gorila. O filme
se irmana aos personagens não pelo afeto, mas pela impotência.
Como em Desassossego, a violência é encenada,
acontece diante da câmera (gesto clássico para um
filme de referência moderna), mas nunca contamina o filme
em sua relação com o espectador. E se não
há violência possível, resta à arte
girar em torno de sua própria construção
e, como a protagonista do filme, descobrir que é capaz
de atravessar paredes para ao fim não sair de seu próprio
quarteirão, como se a potência tivesse serventia
descolada do gesto.
A Alegria se perde muito nessa monotonia voluntária
em nome de sua própria poesia. Há momentos, porém,
em que o filme toma rumos um tanto inesperados e ganha vida considerável.
Em um deles - sem dúvida a melhor cena do filme - os alunos
de uma mesma turma de colégio se unem após a protagonista
ser repreendida por usar o celular em aula, e criam um leve motim
imitando com a boca o barulho de celulares vibrando. Embora esteja
em pleno acordo com o espírito do filme, a afronta silenciosa
ganha força pelo movimento lento da câmera e uma
decupagem precisa que cria o suspense a partir do nada. A solução
visual é mais eloquente do que toda a vontade poética
do filme, e ali, no não-literal, encontra um momento de
real força cinematográfica.
Além disso, há também planos iluminados por
dois atores experientes e inteligentes o suficiente para quebrar
essa monotonia de encenação com inflexões
e sutilezas verbais e corporais: Márcio Vito e Maria Gladys.
Sempre que vemos um dos dois atores em cena, o filme parece recuperar
pulsação, talvez pela simples presença de
espíritos inquietos em meio a tanta quietude. Não
deixa de ser irônico que um filme sobre o poder juvenil
e que deseja se filiar ao que de mais moderno é feito no
cinema hoje só pareça sair do lugar quando dois
atores mais experientes entram em cena, ou quando a flutuação
no presente é potencializada por uma decupagem mais clássica.
Irônico, mas não sem sentido: quando escrevi sobre
A Fuga da Mulher-Gorila, o texto era encerrado dizendo
que o filme encarava um vazio e tentava lhe preencher com o coração
que lhe era original. Temos aí uma definição
possível de arte clássica. A Alegria tem
arroubos dessa força material em meio às afirmações
pouco frutíferas dos encantos e dos limites de seu próprio
quarto (e lembremos que a palavra mais importante no título
do belo romance curto Viagem ao Redor do Meu Quarto,
de Xavier de Maistre, não é "quarto",
mas sim "viagem"). São momentos em que a citação
é deixada de lado e a vontade de filiação
é dispensada para que a relação com influências
se dê na única esfera cabível: Shyamalan é
retomado pela precisão dos tempos, dos cortes, da colocação
da câmera - elementos que, conjugados, constroem uma experiência
viva, tensa e confrontadora. Uma experiência, enfim, cinematográfica.
Novembro de 2010
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