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crítica Sete Olhares para O
Passageiro por Cléber Eduardo
Muito se tem debatido em seminários de crítica a própria
atividade dos críticos. Pouco se tem refletido, nesses encontros, sobre critérios
de análise e julgamento. Tendemos a acreditar, nessa coluna, que critérios estão
na prática, não em suas definições. Não é pouco comum lermos ou ouvirmos críticos
de diferentes áreas afirmarem uma certa maneira de criticar, mas não encontrarmos
esse método quando lemos seus textos. Isso também acontece com determinados filmes,
cujos diretores podem ter em mente uma série de questões antes de estrear seus
trabalhos – mas nem sempre vemos as intenções na tela. Nesse sentido, tanto em
critica quanto em cinema, importam as evidências. Vamos a elas, nos concentrando
aqui na reação ao primeiro filme brasileiro lançado em 2007: O Passageiro,
de Flavio Tambellini. Na Folha de São Paulo, em resenha
assinada por José Geraldo Couto, com cotação de três estrelas, o filme é definido
como diferente, por, conforme escreve o crítico, concentrar-se na discrição
e na sutileza. A qualidade maior, segundo o texto, está nas recusas.
Elas o tirariam do escaninho do cinema de fórmulas para deixar muitos conflitos
em aberto (a intriga empresarial, o quase romance entre o protagonista adolescente
e uma amiga, os traficantes de drogas). José Geraldo Couto termina elogiando a
complexidade dos personagens, o que os tornaria mais reais e pouco esquemáticos.
O que se apreende, após a leitura dos argumentos, é uma
recusa à convenção. O crítico legitima O Passageiro por não ser, digamos,
um filme empenhado em ser “normal”, com tudo explicado, previsível, conduzido
pela relação de causa e efeito. Pode-se perceber por essas colocações que, no
fundo, existe uma aprovação de um cinema narrativo “à brasileira”. Na tradição
de cinema do país, isso não significa exatamente um padrão clássico, à americana,
nem exatamente um derivado do classicismo, mas um cinema narrativo que, antes
de narrar o encadeamento dos acontecimentos para produzir um sentido com equilíbrio,
tem como meta central “mostrar”, sem compromisso com a unidade, aberto a compor
um conjunto a partir de fragmentos em choque ou somados, algo característico de
boa parte de nossos filmes com suposta disposição narrativa. Temos
uma cinematografia que, quando deseja contar uma história e não especular a estética,
o faz como sucessão de curtas, não como um longa em sentido clássico. Talvez seja
esse traço distintivo, moderno em alguma instância, que José Geraldo Couto toma
como eixo. Mas esse traço é menos um traço “diferente”, no sentido aqui proposto
(e não no sentido de José Geraldo), e sim a confirmação de uma constante: a do
cinema narrativo brasileiro como uma construção sempre um tanto alheio às convenções
narrativas rigorosas, mesmo quando faz muito força para reproduzi-las ou para
tê-las como matriz. Não podemos deixar de lembrar de Paulo Emilio Salles Gomes,
para quem a incapacidade de copiar o “certo” era combustível para a originalidade.
Tom Zé pensa o mesmo de sua própria música, a música de um incapaz de compor “corretamente”. Em
texto de quatro colunas em O Estado de São Paulo, cuja extensão é o dobro da resenha
publicada na Folha, Luiz Zanin Oricchio, indo em rumo contrário ao de José Geraldo,
reclama da falta de um diferencial. Ele começa pelos elogios. Destaca a verossimilhança
da relação entre pai e filho como mecanismo de possível identificação
do espectador com os conflitos mostrados e define o estilo de Tambellini como
suave, termo empregado para se referir à uma forma de narrar sem pressa,
com elegância, reprodutora da hesitação do adolescente. A forma
seria a da percepção do personagem. Sua interioridade e suas experiências modulam,
segundo Zanin, a própria organização e o ritmo das seqüências. Nos
sexto dos oito paráfragos, contudo, o crítico começa as relativizações. A primeira
restrição é à frieza de O Passageiro. Não haveria progressão
dramática no processo de descoberta do protagonista. Com isso, constata Zanin,
o filme não envolve (ou envolve comedidamente). Outras restrições: os personagens
têm desfechos pouco convincentes e alguns não interagem com química, o que pode,
segundo o crítico, produzir um não planejado sentido de solidão – como
se, mesmo nos encontros, jovens e adultos continuassem ilhados, trancados em si
mesmos, um traço bastante marcante dos curtas brasileiros e de uma enorme gama
do cinema internacional (de Tsai Ming Liang a Wong Kar Wai), tendo Antonioni como
eixo de quase tudo. Zanin cobra poesia e epifania das experiências
mostradas em O Passageiro, julgando-o correto no tratamento das situações,
mas acanhado em sua linguagem visual. Faltaria risco, transgressão, radicalidade.
Temos nesse final uma reivindicação do crítico: mais atrevimento e menos apaziguamento.
Faltaria-lhe aquela “diferença” apontada por José Geraldo (no sentido de ser um
filme no contrafluxo de certas práticas). Embora elogie a suavidade do relato,
essa suavidade, por outro lado, parece colocada em xeque ao final. Ela não seria
contraditória com uma estética mais agressiva e menos respeitosa com a necessidade
de organizar acontecimentos? Não seria essa ausência apontada por Zanin justamente
fruto dessa opção comedida elogiada por Zanin? Esses dois
eixos dos comentários do crítico apontam para dois critérios. Primeiro o da credibilidade
nas situações, extraídas aparentemente da vida e parecidas com a vida, compondo
um “efeito de mimese”. Parecer real é um dos méritos, assim como aproximar desse
sentido de realidade com cautela, sem arroubos de impacto ou de espetacularização
da contundência. No entanto, esse impacto, aparentemente, é uma ausência notada
(e cobrada). Temos aqui como critério de valoração o grau de transgressão, na
verdade a falta dela, que colocaria o filme mais na vertente moderna, pela qual
é contaminado de alguma forma em sua proposição narrativa segundo José Geraldo
Couto, mas não o suficiente para Zanin. Na Cinética, Eduardo
Valente, em crítica escrita em setembro, por ocasião do Festival do Rio, é enfático.
Adere ao filme sem muitas restrições. Depois de fazer um pequeno paralelo com
Os 12 Trabalhos, de Ricardo Elias, por conta da perambulação vacilante
dos protagonistas adolescentes, aponta o diferencial do trabalho de Tambellini:
a disposição de falar de dentro da elite urbana (carioca), mas sem emitir
julgamentos de classe, o que não significa, para Valente, abrir mão de um
olhar crítico para certas atitudes, que entram em cena para ampliar a crise do
bom moço que está à frente da narrativa vivendo a descoberta de si no mundo. O
primeiro critério de avaliação, portanto, é de representação de “meio” e de personagem,
que, como destaca o texto, não é um burguês com espírito de Robin Hood, mas um
filhinho de papai com mal estar por sua condição. Essa alvez seja uma imagem
que possa ser extendida, sem danos, mas com relativizações, a uma mentalidade
da classe cinematográfica contemporânea, sobretudo quando filma outros ambientes
sociais, sem deixar de disfarçar o orgulho de seu bom mocismo. Uma classe com
mal estar, que, para se livrar dele, adota o espírito solidário. O “outro” de
O Passageiro, porém, não brinca em serviço. A crítica destaca a habilidade
do realizador como cronista urbano, no que se aproxima, fortemente, dos
argumentos de Julio Bezerra no blog Cinekinos. Valente valoriza
a “verdade” das atitudes dos jovens no filme, menos por conta de empenho naturalista,
mas por uma crença no poder da encenação. Fica aliviado de não encontrar
naqueles modelos humanos os mesmos traços dos “modelos visuais” da série Malhação.
Sua única ressalva é à uma espécie de contrabando de questões de fora do círculo
jovem, como a investigação sobre o assassinato do pai, o motivo de sua morte e
todo uma relação do adolescente com o mito torto de seu ascendente direto. Como
também afirma Julio Bezerra, nesses núcleos, o filme parece querer ser outros
filmes. A crítica de Valente enfoca, basicamente, os mecanismos de ficção, mas
sem os isolar do mundo fora da tela. Seu interesse está tanto em observar as imagens
do universo dos jovens e da classe média/alta para identificar se elas soam autênticas.
A experiência direta, mais que simbólica, é a questão de Valente. Em
O Globo Online, Daniel Levi, de cara, acaricia e questiona. Acaricia a competência
técnica e das interpretações. Questiona o roteiro, que, segundo escreve,
produz estereótipos. Não haveria na imagem a tal verdade autêntica obtida
pela encenação (como apontada por Valente), mas uma reprodução de códigos
e de clichês de representação, o que também o diferencia de José Geraldo.
Levi chama atenção para uma situação considerada de absurda inverossimilhança
(contrariando a valorização de verossimilhança de Zanin) e detecta uma superficialidade
geral no tratamento das situações, alegando, hipoteticamente, que ela pode ser
fruto de um receio de ser baixo astral, caso o filme se arriscasse a ser mais
profundo. Cobra-se então profundidade e não a superfície das imagens, mas, sendo
o cinema uma expressão de evidências, de corpos, de ações, de espaços, qual seria
exatamente a noção de profundidade reivindicada? O que seria o profundo nas imagens?
Ou essa profundidade seria uma maneira mais complexa de conectar as situações
do filme com as situações da vida? (conexão essa tematizada por quase todos os
críticos) Guilherme Martins dá o veredito catastrófico logo
no primeiro parágrafo de sua crítica na Contracampo, no qual elogia a falta de
grandeza histórica e social do filme, mas logo decreta essa estratégia como disfarce
para uma falência estética. No entanto, ao chegar ao final do texto, caracterizado
pelo movimento de sanfona (entre elogios e duras restrições), reconhece o grande
interesse manifestado por O Passageiro. Martins identifica a tal falência
estética em cortes “toscos” , em planos sem sentido de paisagens e de
passagem, mas, logo adiante, muda o discurso e reconhece méritos: as entradas
e saídas de personagens na narrativa, considerada justificável dentro da
lógica interna, a boa atuação de Bernardo Marinho como Antonio, o senso
de cotidiano para o protagonista e valorização do processo de descoberta dele,
independentemente das descobertas em si mesmas (ou seja, importa o processo).
As deficiências visuais salientadas na crítica, apesar de não ocuparem um trecho
significativo do texto, são uma forma de avaliar a potência das imagens, assim
como a habilidade para se construir uma dinâmica narrativa, de encadeamento e
composição de planos. Esse tipo de observação está ausente das demais reações
ao filme e o encara logo de início como um tecido de formas, não somente como
estrutura, uma aproximação com universos ou uma imitação da vida, por assim dizer. No
Omelete, Marcelo Forlani aponta os excessos dos atores Antonio Calloni e Giulia
Gam (sintoma do envolvimento deles com o teatro, segundo a resenha), considera
muitas situações mal costuradas e reclama da falta de desenvolvimento de alguns
conflitos, talvez apontando como problemas justamente o que José Geraldo Couto
elogia como sutileza e como recusa a explicações. As restrições têm como motivação
a cobrança de um cinema mais naturalista na atuação e mais organizado como roteiro.
Exatamente o que José Geraldo, na Folha, considera um alívio o filme não ser.
Sua linha de argumentação está mais próxima da de Levi em O Globo. Nesses
sete textos sobre O Passageiro, cada um deles modelado pelos diferentes
tamanhos, sendo o de Zanin o mais extenso, pode-se ver formas distintas, e até
opostas, de se aproximar de um mesmo filme. Pode-se ainda perceber, melhor em
uns casos, nem tanto em outros, quais são os critérios. Talvez eles não sejam
tão conscientes, tão programáticos, tão metodológicos, mas estão lá nos textos,
ditando o tipo de abordagem crítica e as regras pelas quais os filmes são julgados.
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