5x Favela:
Agora Por Nós Mesmos,
de Cacau Amaral, Cadu Barcellos, Luciana Bezerra, Luciano Vidigal,
Manaíra Carneiro, Rodrigo Felha e Wagner Novais
(Brasil, 2010)
por Cezar Milgiorin
Mundo
100% Favela
O filme é ótimo! Mas o que está em questão aqui
não é apenas um filme, mas um gesto político em que o filme é
parte de uma trama que envolve ONGs, projetos sociais, livro,
blog, Eike Batista, Cacá Diegues. Cada um desses personagens ligados
a diversas outras forças e poderes. Ao se apresentar como algo
mais que um filme, ou seja, como um projeto de cinema e de cidade,
essa complexa trama interessa tanto quanto o filme. O titulo talvez
seja o elemento mais revelador de tal projeto. Fora a referência
ao filme de 1962 (Cinco Vezes Favela), o subtítulo que
segue, "Agora por Nós Mesmos", aponta para aqueles que
fazem o filme, os cineastas da favela. É com este olhar que devemos
ver o filme: não são os outros falando da favela, “mas nós mesmos”.
Ou seja, o ponto de vista está explicitado e ele é real, não mediado,
não contaminado.
Assim, o "por nós mesmos" indicial precisa
ser entendido de duas maneiras: primeiro esteticamente, ou seja,
a favela será autora da organização dos espaços, tempos, gestos,
discursos. Em segundo lugar, como problema político (o que não
significa que as duas coisas estejam separadas). Esteticamente,
como produtor, Cacá Diegues faz escolhas homogeneizantes. Antes
de tudo, o que precisava ser garantido é um “padrão de qualidade”,
e para isso o projeto opta por uma equipe técnica em que a única
variável é o diretor, mantendo assim um certo formato de oficina
audiovisual em comunidades carentes, em que os técnicos se repetem
para que o jovem possa assumir o lugar da "criação".
O “nós mesmos” é restrito ao diretor que possui a originalidade
intrínseca ao seu lugar (físico) de fala, como se toda condição
social fosse acompanhada de um saber e de uma originalidade estética.
A favela, que no discurso do filme pretende se distanciar dos
estereótipos e não ser determinante deste ou daquele modo de ser,
é determinante de um lugar de fala, num paradoxo intransponível.
A homogeneização da equipe e dos roteiros é importante para dar
unidade ao filme, o que pode ser decisivo para o sucesso comercial
do projeto.
Nesse sentido, todos os roteiros são muito bem
amarrados, com personagens consistentes e finais em chave de ouro.
Podemos entender então que ser da favela é também algo homogêneo,
uma vez que entre os que ali estão não há diferenças estéticas
importantes, pelo menos não na forma como desejam se expressar.
Enredado nas forças que produzem esse filme, desaparece qualquer
marca que possibilitasse a existência de um “nós mesmos”. Entretanto,
talvez fosse importante, politicamente, que assim fosse, que os
“nós mesmos” não se impusesse como uma diferença estética. Por
quê? O
“por nós mesmos” só pode existir se partirmos de uma separação:
eles e nós. A favela e o asfalto. Para legitimar o ponto de vista
da favela é preciso começar dividindo, é isso que o projeto/filme
faz. Não é pouca coisa. Se há uma inquietação em relação
a uma favela que não é tão parte da cidade como o asfalto; que
não tem direito à luz, à livre circulação, ao frango ou à escola,
o que o título e toda a campanha em torno do filme produz é uma
ênfase na divisão. A favela de um lado e o asfalto de outro. Parte-se
da falta de democracia para tentar recuperá-la mais adiante. Enquanto,
na verdade, ou se parte da democracia ou ela não chegará. Nesse
sentido, a demarcação “por nós mesmo” é a imposição de uma divisão
da cidade que nem na prática é tão vigente. Contudo, a homogeneidade
do filme não é um apagamento da identidade favela ou uma diluição
de um estereótipo, mas a migração de todos – das favelas e dos
que estão fora delas – para a naturalização de uma forma hegemônica
de se fazer cinema, bem pouco inquieta. Essa homogeneidade, se
por um lado enfraquece a singularidade dos projetos, por outro
faz com que os roteiros e as atuações – excelentes – estejam em
primeiro plano.
Pelo
menos três episódios partem de um claro desejo de mostrar que
“não somos apenas o que o asfalto acha que somos; traficantes,
ladrões, violentos, perigosos”. Agora por nós mesmos, mas para
os outros. Além de legitimar um ponto de vista, o “por nós mesmos”
tem a função social de dizer o que não somos, com a garantia de
quem fala de dentro. O discurso político parte, assim, de uma
oposição entre conhecimento e ignorância, como se a opressão e
a carência a que estão submetidos os moradores da favela tivessem
a possibilidade de serem minimizadas a partir do momento que a
favela pudesse falar de suas necessidades e de suas qualidades.
Ora, não é por falta de conhecimento que o preconceito e a opressão
se perpetuam. Podemos, assim, pensar a dimensão política de
5X Favela, Agora por Nós Mesmos de duas formas. A primeira,
relativa ao projeto do filme: trata-se de uma dimensão política
em que o filme se auto-efetiva. Ou seja, o filme, antes de ser
uma peça política e estética é, em si, uma ação, um projeto de
ação social e isso é amplamente destacado pela mídia. Não que
o filme seja apenas um projeto social, não é isso; mas, ao se
apresentar como uma produção “por nós mesmos” ele se valoriza
no deslocamento que faz de seus realizadores – das favelas para
Cannes, das importantes oficinas de formação para o multiplex.
Como gesto político, o filme se auto-efetiva, formando, ensinando,
emancipando individualmente as centenas de envolvidos no processo.
A
segunda dimensão política é propriamente discursiva: o que é a
favela do filme? Antes de tudo, a favela é um espaço de carência.
Falta dinheiro para o ônibus, falta carne, falta luz. Três episódios
são construídos em torno dessas carências. E, diante da falta,
a solução é a ilegalidade. Tráfico, roubo, ameaças, sempre por
necessidade. Mas, na favela, impera a honestidade e a camaradagem
e assim a harmonia e a superação prevalecem. Mesmo no episódio
Concerto para Violino, de Luciano Vidigal, o mais duro
e violento, há, por um lado, um destino-favela que se impõe às
vidas dos três amigos de infância, levando-os a lados distintos
do crime e da superação e, por outro, uma lealdade que resiste,
mesmo se ela se materializa no assassinato dos amigos. Enquanto
discurso, a favela precisa se afirmar. Mas afirmar o quê? Aquilo
que ela reclama, aquilo que falta. Politicamente, o que interessa
é afirmar o contrário do que a carência explicita. Onde falta
tanto, não falta inteligência, generosidade e humor. O que produz
a falta econômica está em outro lugar, não na favela, parece nos
dizer o filme, uma vez que as carências ali são materiais, mas
não humanas. Ou seja, é preciso reclamar e afirmar a favela como
produção e invenção, entretanto é a falta que produz uma unidade
para favela.
O problema da política, como sabemos, não é a
legitimação desta ou daquela identidade como lugar de fala, mas
a possibilidade dos sujeitos e grupos fazerem escorregar seus
lugares de fala, podendo enunciar nas brechas em que eles deixam
de ser iguais a eles mesmos – seja este um “eles mesmos” que lhes
é imposto pelos preconceitos, seja pelo “eles mesmos” que os legitima.
A política é justamente esse escorregar, essa passagem do que
alguém diz que sou, ou que devo ser, para outra coisa, para outro
espaço ainda não mapeado. Nas reivindicações que o filme apresenta,
não há nada que não esteja dado na sociedade. Todos os poderes
sabem muito bem responder à injustiça como discurso: estamos trabalhando,
há cotas, mais vagas na universidade, a situação do pobre melhorou,
etc. Tudo isso é verdade, porém em nenhuma dessas formas de reivindicação
há ainda a irrupção de um modo subjetivo outro, de uma forma de
estar e ser no mundo que produza deslocamentos sensíveis, que
permita falar e sentir o que estava negado.
Nesse
sentido, o mais interessante dos episódios me parece o dirigido
por Cadu Barcellos, Deixa Voar. Não que ali haja uma real
diferença em relação à homogeneização que abarca todo o filme,
mas por que há um personagem singular. Trata-se de um garoto –
Flavio – que perde uma pipa e precisa ir para o outro lado da
favela para recuperá-la; o lado "dos alemão", dos inimigos.
Flavio é talvez o mais político dos personagens deste novo 5x
Favela. Um pouco a contragosto, mas sem oferecer uma real resistência,
Flavio atravessa a ponte e segue como se aquele lugar lhe pertencesse,
como se estivesse acima de qualquer lei local que não o autoriza
estar ali. Ele segue não porque é corajoso ou porque decide enfrentar
o inimigo, segue apenas porque para ele o espaço parece mais fluido,
menos recortado do que realmente é; Flavio enfrenta o próprio
filme. Ao encontrar os pretensos inimigos, não esconde que vem
do outro lado. Sua ingenuidade é superior à estupidez.
Enquanto
os episódios pautados por carências são dependentes de personagens
ativos, heróicos, justos, Flavio não. Ele é antes um sujeito que
estranha aquele espaço e vivencia o estranhamento sem saber muito
para onde vai, porque vai. Neste episódio não há uma verdade da
favela que precisa ser ensinada à cidade; pelo contrário, é um
certo não-saber do personagem sobre qual é o seu “devido lugar”
que faz com que ele vá ocupar um espaço que não é o seu – atravessar
a ponte e ir para o lado “dos alemão”. Ali se instaura a maior
ruptura com a favela como ordem de opressão, sem precisar sair
dela, sem nenhuma moral ou ensinamento, sem colocar o espectador
no lugar daquele que deve ouvir as lições do morro. Flavio não
faz a passagem da carência à bonança individual, como parece ser
o ideal da maioria dos personagens, mas uma passagem propriamente
política, maior do que sair de um lugar para se afirmar em outro,
mas a possibilidade de abandonar um lugar para estar em qualquer
outro. Para Flavio, a ponte não liga dois lugares, mas a favela
e o mundo. Ao cruzar a ponte, seu lugar no mundo não está mais
atrelado a nada, a nenhuma identidade, a nenhum “por nós mesmos”.
Destacar esse episódio, não significa dizer que
não haja mais inventividade nos outros. Me concentro aqui nas
ações centrais, nas linha condutoras de cada roteiro. Mas poderíamos
destacar pequenas seqüências e personagens que encontram espaços
preciosos nos curtas e nos abrem para percepções singulares, como
o médico de Fonte de Renda, o assalto praticado pelos “playboys
infantis” em Feijão com Arroz ou o brilhante plano final de Acende
a Luz.
“Somos consumidores de subjetividades”, escreveu
Peter Pal Pelbart. A favela ganhou nos últimos anos um lugar decisivo
no imaginário não só do Rio de Janeiro, mas do mundo. Não há mais
nenhuma celebridade mundial que venha ao Rio e não vá a uma favela.
Que bom! Grande parte dessa mudança está ligada à produção, sobretudo
literária e musical, que surgiu do interior das favelas. Elas
não são mais objeto de intelectuais, sociólogos e antropólogos,
mas, simultaneamente, espaço de intensidades estéticas e de vida
que, de maneira indistinta, faz tais potências circularem entre
turistas, consumo, secretarias de estado, livrarias da zona sul,
universidades, etc. A favela encontra esse espaço na polis e não
se enquadra em uma simples substituição daquilo que um dia foi
o sertão para as artes e para a esquerda, ou seja, um lugar onde
o sujeito se afirma apesar de tudo – seca, capitalismo, urbanização.
A afirmação contemporânea da favela é antes pela sua produção.
Produção estética, subjetiva, arquitetônica, sonora, trabalhista,
etc. Produção que está engajada com os ideais emancipatórios distintos
daqueles legados pelo ideal marxista em que a emancipação estava
diretamente ligada à identificação do sujeito ao seu lugar social,
à classe. Mais do que produtos, o que há de mais caro ao capitalismo
contemporâneo são modos de vida, freqüentemente representados
por certos produtos. Mas esses modos de vida não são inventados
por companhias ou pela indústria, mas pelas vidas mesmo. Liberar,
estimular e domesticar, mais do que nunca o capitalismo entendeu
que suas maiores forças estão do lado de fora da empresa, no descontrole
das vidas (freqüentemente limitada a consumidores).
Que o mercado deve fazer, e fará, parte dos modos de vida desses
novos sujeitos do discurso, não há dúvida, mas é o mercado que
virá ao encontro do que é produzido por esses sujeitos, das novas
estéticas e discursos, dos modos que inventaremos de expor ética
e esteticamente o insuportável da desigualdade. Ao nomear o mercado
como fim, como se devêssemos entrar nele para de dentro lutar,
se corre o risco de transformar toda ação em paternalismo e docilidade.
Isso tudo significa dizer que 5x Favela é só docilidade, só ajuste
para fins mercadológicos; claro que não, a ambigüidade é parte
intrínseca a tal projeto. Mas, o filme parece acreditar que estes
jovens chegaram em algum lugar e que, se há saída possível, ela
está no próprio lugar em que o projeto os coloca: a mídia, o mercado,
o sucesso de bilheteria. Saídas individuais e midiáticas.
A produção contemporânea, na música, no cinema,
na literatura, no trabalho, nas redes, nas formas de vida, é justamente
uma operação de alargamento e estranhamento do que é favela. Leblon
100% Favela, Manuel Carlos 100% favela, Favela 100% Favela, Rio
de Janeiro 100% favela, Mundo 100% favela. A comunicação caótica
e incessante entre o que é e o que não é favela, ao ponto de tornar
a favela indistinguível, é o que mais nos falta. Desinventar e
tornar tudo favela.
Setembro de 2010
editoria@revistacinetica.com.br
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