ensaio
Presente perdido, olhares com passado
por Cléber Eduardo
Em
uma produção cuja maioria dos filmes é de diretores iniciados
após os anos 80, com conseqüente visão hegemônica da multifacetada
geração de “realizadores estreantes pós-Embrafilme”, é no mínimo
sintomático o diálogo entre os olhares de três diretores com início
nos anos 50 (Nelson Pereira dos Santos), 60 (Ruy Guerra)e 70 (Ugo
Giorgetti). Em 2006, no Brasil governado por Lula e no cinema
brasileiro com 12 anos de Lei do Audiovisual, a que reagem, em
seus filmes, esses autores? E com quais estratégias? Não se deve
buscar em seus filmes apenas sinais de um “posicionamento de veterano”,
de quem viveu outras expectativas históricas, outras experiências
políticas, outras batalhas na afirmação de suas posturas. Também
não se pode ignorar esse diferencial, ainda mais em um contexto
de renovação constante e intensa de diretores. Só não devemos
perder de vista que são os filmes que nos permite fazer aproximações.
Ou não.
Como os três diretores tiveram filmes em cartaz
nesse primeiro semestre, pode-se ver suas obras com razoável proximidade,
resultando disso algumas considerações. Em Brasília, 18%, Veneno
da Madrugada e Boleiros 2, um traço os aproxima em
alguma medida, sem com isso abafar uma série de diferenciações.
Temos nos três a recorrência de espaços contaminados por células
malignas, que criam ambientes de mal estar e desintegração entre
os seres e seus tempos-lugares. Pode ser a corrupção política
(Brasília 18%), a exacerbação mercantilista do futebol
(Boleiros 2), uma atmosfera de suspeitas (Veneno da
Madrugada). Cada caso é um caso, mas nos interessa, nesse
pensamento ainda em elaboração, detectar caminhos comuns. E essas
confluências se dão, de formas diferentes, no compartilhamento
da resignação.
Em Brasília 18%, há o círculo do
poder, diante do qual, na incapacidade da manutenção da ética,
só resta capitular, antes de saltar fora (lógica não muito diferente
da de O Príncipe, de Giorgetti). Em Veneno da Madrugada,
há uma cidadezinha atolada em acusações e suspeitas, em ciclo
que se repete. Em Boleiros 2, há um bar artificializado,
point de jogadores aposentados, símbolo de uma mentalidade mercantil,
mas, dentro do qual, os freqüentadores, apesar do constante lamento
sobre a mudança do lugar, continuam sentados.
Não data de hoje o interesse de Giorgetti pelo
decadentismo da contemporaneidade. As nocivas mudanças produzidas
pelo capitalismo (em linhas gerais) são abordadas em Sábado,
O Príncipe e agora em Boleiros 2 , cada vez mais
com menos espaço para o riso e com maior presença de um clima
melancólico. Tem-se nesses filmes uma atmosfera de luto - com
mais ou menos ironia - pela morte/degradação dos sinais do passado.
O novo é sempre um passo adiante na piora do mundo. Nos dois filmes
mais recentes, O Príncipe e Boleiros 2, os alvos
do diretor são mais concretos: o país em um, o futebol em outro.
Uma sensação de “nada a fazer” paira no ar, de deslocamento no
mundo atual, de diagnóstico de enfermidades, que, embora reconhecíveis,
não abrem horizontes de cura.
Quase como contraposição a certa cultura da eficiência
e da produtividade, Giorgetti encena suas questões também com
uma estética deslocada no tempo, quase desleixada em seu conservadorismo,
construindo sua marca com uma recusa a sinais caracterizadores
do cinema dos anos 2000, sem dinâmica de impacto, sem rigor de
enquadramento e sem agilidade de câmera e cortes. Assume-se assim
uma noção estética de “cinema de outro tempo e contexto”, para
assim se singularizar na contemporaneidade. Seu olhar está sempre
lançado da memória de um tempo melhor, que não retorna, e contra
a morte do qual nada se tem a fazer. A não ser que esse retorno
ao passado, como é articulado nas imagens de Tapete Vermelho,
de Luiz Alberto Pereira (documentarista nos 80, ficionista nos
90), se dê no terreno do fabular – uma solução aparentemente impensável
no caso de Giorgetti.
Veneno
da Madrugada difere um pouco desse tom, sem deixar
de estar em comunicação. O filme é complemento a Estorvo
e, em certo sentido, é o letárgico day after daquele agonia
inconformada. No filme anterior, havia uma luta por entendimento
e sobrevivência, mesmo sem se descobrir nada e sem se sobreviver
ao final. Fracasso com energia. A estética do desconforto surge
ali de uma desespacialização labiríntica, que aguça sentidos (mais
que a razão), graças a uma combinação de câmera, luz e cortes
que promove a dissolução do construído, como se tudo o que há
de lógico se desmanchasse na imagem.
Veneno
da Madrugada não tem essa reação pulsante diante do
abismo inevitável. Sua ambientação e atmosfera são sorumbáticas
e modorrentas, nas quais a potência da recusa torna-se jogo conceitual.
Não se berra mais na imagem. Balbucia-se. A imagem deixa de ser
turva (Estorvo) para se tornar ornamentada. Essa alteração
de tom salienta a visão desanimada do olhar narrador para uma
terra de seres fantasmáticos, sem sopro de energia vital e de
reação na crise. Se nos reaproximarmos de Os Cafajestes,
Os Fuzis e A Queda, veremos com mais clareza que,
se já neles o mal estar existia, reagia-se nos filmes com maior
intensidade, ao passo que os próprios filmes, em suas opções estéticas,
também reagiam ao mundo com mais virulência. Veneno da Madrugada
opta por, em vez de espernear na areia movediça, aceitar a inevitabilidade.
Há um certo grau de desistência da crença política expressa na
linguagem.
Podemos afirmar o mesmo de Nelson Pereira dos Santos se tomarmos
Brasília 18% e Rio 40 Graus. É óbvio que se quer,
nos dois filmes, revelar sinais de um meio. A questão é: como?
Se não é exatamente otimista em seu retrato da relação entre os
diferentes segmentos sociais, Rio 40 Graus olha para situações
que reprova com algum senso de espanto e indignação. Em Brasília
18%, ao contrário, há naturalização do absurdo e, naturalizado,
ele fica mais absurdo. Para explicitar isso na linguagem, propõe-se
para o protagonista, médico legista que mora em Los Angeles, um
colapso de percepção. As imagens, como em Estorvo, não
são provas. Perderam a credibilidade como signo de verdade. Há
um deslocamento entre o real e a evidência do real. Nessa escolha
dramática, filme, diretor e personagem se fundem. Não se pode
afirmar que, na linguagem e no tom, haja indignação em Brasília
18%. Há sim, ao contrário, resignação. Conformismo com uma
crise contra a qual não se pode mais lutar ou reagir. Resta a
Nelson Pereira rir, de cantinho de boca, com a solução dramática-política:
a saída pelo aeroporto.
Declaração de derrota política, ao menos para
quem começou no cinema como paraninfo do Cinema Novo, Brasília
18% tem vários focos de interesse. Se promove um filtro entre
o alvo de sua câmera e o resultado captado por ela, esse filtro
gera a construção de um mundo estranhíssimo. O filme é, antes
de mais nada, sobre o estranhamento gerado pela passividade do
protagonista no alto círculo de Brasília, no qual transita de
um lado para o outro sem nos ofertar nenhuma recusa a este espaço,
até por estar em um momento autista, atolado em suas próprias
questões fantasmáticas. Olavo Bilac (Carlos Alberto Ricelli),
esse alienígena entorpecido, é um deslocado indiferente. Passa
pelos lugares como se os lugares não existissem e, levado por
quem lhe conduz pelo braço, está sempre ao lado de quem não deveria
estar, menos por oportunismo e mais por falta de domínio dos códigos.
Há
variações recentes de Olavo Bilac no cinema brasileiro. São personagens
cuja principal característica é uma dificuldade de compreender
o mundo recusado por eles mesmos. Podem apenas olhar o entorno
sem emitir suas considerações (O Príncipe, de Ugo Giorgetti),
ou também sofrer um colapso de percepção como Olavo (Rua Seis
Sem Número, de João Batista de Andrade), ou ainda ser um ouvido
sem jamais ser uma voz ou uma consciência moral (Carandiru,
de Hector Babenco). Olavo é a soma desses três exemplos. Sua resistência
a fazer o que mandam ele fazer, antes de ser da ordem da ética
política, é balizada pelo rigor profissional em sua atividade.
Ele é, acima de cidadão, um cientista. Reivindica lógica, não
moral. Na ausência da lógica, portanto, só lhe resta partir. Homem
centrado em evidências, não as tem mais como referência. Brasília
18% é o arquivamento da razão pelo simples fato de a razão
não servir de grande coisa para entender e transformar a realidade.
Parece ser essa a mesma colocação de Boleiros 2 e Veneno
da Madrugada.
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