admirável mundo novo
O 3D em questão
por Pedro Butcher

colaboração para a Cinética

A produção crítica de uma revista como a Cinética não se dá somente em suas páginas virtuais; ela acontece também nos encontros às saídas de sessões de cinema, nas reuniões em mesa de bar e, principalmente, na lista de discussões. Por vezes, uma conversa na lista movimenta os redatores de tal forma que artigos ou ensaios completos surgem em forma de emails, sem com isso perder a consistência de argumentação e proposição de idéias. Muitas vezes estas conversas vão parar no nosso Diário de Redação; agora, pela primeira vez, um email da lista resulta diretamente num texto autônomo, que publicamos em seu tom original. Embora já não publique textos na Cinética há algum tempo, nosso colaborador e colega Pedro Butcher mandou para nossa lista esta resposta informal ao artigo publicado pelo crítico de cinema Rober Ebert, na Newsweek, sobre a recente massificação da produção e projeção de filmes em 3D.  (Fábio Andrade)

* * *

- Um dos equívocos do Ebert é dizer que "there's money to be made in selling new digital projectors". É claro que o desembarque do novo 3D é produto de uma imensa força econômica e de altos investimentos (e é claro, também, que a indústria vai fazer de tudo para recuperá-los). A pressão pela digitalização vem dos grandes estúdios, que vão economizar horrores na confecção de cópias 35mm. A indústria do negativo é uma indústria em perigo. O que sustentava a produção em massa de negativo era a fotografia caseira, que já migrou toda para o digital. Daqui pra frente, negativo tende a ser artigo raro e, portanto, caro.

Os exibidores, ao contrário, estão ressabiados nessa migração para o digital, e com razão. O projetor digital é caro e a manutenção duvidosa. E não há dúvidas de que vão ficar obsoletos muito mais rapidamente, enquanto o velho e bom projetor 35mm podia durar mais de 20 anos (com boa manutenção). Nessa imensa briga que tem sido a migração para o digital nas salas (imensa pressão dos estúdios, imensa resistência dos exibidores, e um empurra-empurra para saber quem vai pagar a conta), o 3D apareceu como "salvação da lavoura". O público respondeu e tem pagado o preço, como já havia respondido lá nos anos 50.

- Antes das questões industriais e da força econômica que estão ao redor do novo 3D, o fato é que o 3D é um desejo estético, antes de tudo. É um evidente prolongamento da questão da perspectiva. Ou seja, esse negócio vem lá do Renascimento. O prefácio do livro de Lenny Lypton de 1982 (que é considerado a pedra fundamental desse novo 3D digital) é um barato. Ele fala obsessivamente dos quadrinhos em 3D, descreve alguns com detalhes, fala de desenhistas que conseguiam uma impressionante noção de volume e de outros que obtiam efeitos ridículos. Vai ser assim no cinema também.

- O 3D não pode ser visto isoladamente, mas é parte dessa revolução muito maior, que é a do cinema digital. A gente já viu o começo dessa revolução numa ponta (câmeras portáteis, democratização dos meios de produção e difusão), agora estamos vendo na outra, a do grande cinema industrial. Pode vir algo muito refrescante daí. Paula Gaitán falou no Facebook que "Meliès é 3D", com toda razão. Talvez eu invertesse a equação: o "3D digital é Meliès". Alguns desses filmes mostram uma certa perplexidade diante do "pode-se tudo". Alice é incrível, as aparições e desaparições do gato são deslumbrantes.

- O 3D é só mais uma ferramenta, como o som e a cor. Pode ser que ela se torne hegemônica, pode ser que não. James Cameron usou a profundidade, Tim Burton usou as "camadas". Alice parece um livro daqueles que você abre e os cenários saltam.

- Também acho bobagem ele dizer que "as crianças são torturadas pela propaganda e merchandising para querer o 3D". Tenho impressão de que foi bem o contrário. O 3D foi "marketado" muito cautelosamente, coisa raríssima e estranha nessa indústria. Antes de Avatar, os filmes em 3D estreavam quase que "na moita", até porque o número de salas - proporcionalmente tanto lá (nos EUA) como cá – era ínfimo. Acho sinceramente que, no caso do novo 3D, a curiosidade e a demanda foram (e ainda estão sendo, não sei por quanto tempo) reais.

- Tenho acompanhado o 3D desde A Casa Monstro (não vi O Expresso Polar, acho que em 3D nem passou por aqui) e é um processo bem interessante. Parece que Zemeckis recebeu a missão de realizar esses filmes que são visivelmente experimentais (no sentido industrial). Casa Monstro (foto), Beowulf e O Natal de Scrooge são filmes "beta", que testam tecnologias, efeitos estéticos, procedimentos de montagem. Tem uma evolução bem interessante aí, ainda a ser estudada. Me lembro bem da primeira sequência de A Casa Monstro, em que uma menina anda de velocípede por uma rua cheia de folhas secas. Ela acelera e as folhas voam na nossa direção, tomam conta da sala de cinema. É de fazer "uau". E as sessões de 3D têm sido incríveis. Vi Alice com uma amiga que estava conhecendo o novo 3D pela primeira vez e ela soltou vários "uaus". É bonito de ver.

- Agora que ganhei um PlayStation 3 e me tornei um jogador de videogame tardio (só faltava essa, perto dos 40 estou enfrentando medusas e minotauros no "God of War"), comecei a entender muito melhor esses filmes. Avatar e Alice são jogos, e tem toda uma nova dramaturgia aí. Não me parece mais aquela coisa teleológica. É tudo muito mais modular. Módulos que vão se encaixando e definindo uma trajetória, uma aventura. Existem, sim, objetivos a serem cumpridos, mas são meros pretextos para uma viagem sem fim. Daí tantas e tantas continuações. Piratas do Caribe era bem assim. Alice é puro jogo, visualmente inclusive. Ela tem que matar o dragão; tem que encontrar uma espada; determinadas tarefas não consegue fazer se não tiver cumprido outras, etc. Porque o que importa é o jogo. As "missões" são puro pretexto para a aventura do meio.

Maio de 2010

editoria@revistacinetica.com.br


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