ensaios - retrospectiva 2008
Um ano em dez filmes O
múltiplo perfil dos preferidos de Cinética por
Cléber Eduardo Listas
são escolhas de momento, que podem apontar uma visão mais geral de cinema de quem
escolhe, mas também podem apenas apontar preferências que, antes de responderem
a uma visão, reagem a uma mobilização imediata em relação aos filmes. Não são
exatamente apontamentos para a História, cânones engessados, mas uma tomada de
partido em dado momento, que têm como critério um ano determinado apenas como
circunscrição do tempo, como periodização convencionada, como forma de interferir
nas eleições de um instante histórico. Não deixa de ser uma forma de determinados
grupos de críticos somarem suas diferenças e suas aproximações de visão e de critérios
de valoração. É sempre um novo dado para os leitores lidarem com a revista e para
no futuro tentarmos lidar com essas reações ao nosso presente. Não deixa de ser
instrutivo ver as listas de publicações e de críticos de décadas atrás, a forma
com a qual estabeleciam seus cânones pessoais em dado ano, as escolhas para construir
em alguma medida o retrato desse momento.
Cinética
não tem o costume de fazer listas de melhores do ano – ao menos até agora, mas
propusemos uma consulta interna dos preferidos de cada um dos oito redatores entre
os filmes lançados em circuito comercial em 2008. Serras da Desordem, de
Andrea Tonacci, liderou três dessas listas e esteve presente em outras quatro
– nenhum outro filme teve a mesma representatividade no conjunto da redação. Se
destacaram ainda Não Estou Lá, de Todd Haynes, melhor filme do ano para
dois redatores; e A Questão Humana, de Nicolas Klotz, também líder de duas
listas. Falsa Loura, de Carlos Reichenbach; e Paranoid Park, de
Gus Van Sant, completam o quinteto de preferidos, mesmo sem terem encabeçado nenhuma
seleção de 10 mais. Os outros cinco melhores votados tiveram pequena margem de
diferença entre eles: A Fronteira da Alvorada, de Philippe Garrel; Uma
Garota Divida em Dois, de Claude Chabrol; Fim dos Tempos, de M. Night
Shyamalan; A Espiã, de Paul Verhoeven; e Sweeney Todd, de Tim Burton.
Outros 18 filmes foram mencionados. Curiosamente, os filmes
mais destacados são alguns dos melhores filmes americanos, franceses e brasileiros,
com um time de realizadores de estilos muito particulares e com diferentes percursos
fílmicos: Andrea Tonacci, Todd Haynes, Nicolas Klotz, Carlos Reichenbach, Gus
Van Sant, Philippe Garrel, Claude Chabrol, M. Night Shyamalan, Paul Verhoeven
e Tim Burton. Apenas
o holandês Verhoeven sai do circuito EUA-França-Brasil. O fato de termos
colocado dois filmes brasileiros entre os cinco mais votados, sendo também brasileiro
nosso preferido na redação, certamente será entendido por alguns como nacional-paternalismo
acrítico, mas, se talvez somente no Brasil esse resultado pudesse ocorrer, isso
tem menos a ver com protecionismo doméstico e mais com uma assumida posicionamento
de nosso olhar. Olhamos do Brasil. Portanto, se na soma das nossas escolhas, Serras
da Desordem e Falsa Loura (foto) estão na frente de Paranoid Park
e A Fronteira da Alvorada é porque, para alguns de nós, Tonacci e Reichenbach,
no comparativo de 2008, estiveram acima de Van Sant e Garrel. Não significa que
o cinema brasileiro, por conta dos dois e de mais alguns (Carlos Nader com Pan-Cinema
Permanente, Julio Bressane com Cleópatra e Mojica com A Encarnação
do Demônio – todos votados por mais de um redator), esteja à toda e
vendendo saúde. Significa apenas que, no varejo, nossos principais diretores,
comparados a outros de outras nacionalidades, andam junto ou na frente. De
fato, a predominância de aparições de Serras da Desordem não pode ser ignorada.
Quaisquer outras pessoas reunidas chegariam a outros resultados, mas dentro do
grupo pequeno de oito redatores da Cinética (sendo cinco moradores de São Paulo
e três do Rio), as operações de Serras da Desordem, em altíssimo grau,
foram consideradas as mais importantes e expressivas. Isso diz algo sobre nossa
composição de olhares. Uma aproximação mimética com o referente, em forma de jogo,
de re-aproximação, de re-apresentação, de retorno revivido, mas também um desnudamento
do mimetismo, uma procura pelos efeitos acima das delimitações de fronteira. Autenticidade
na construção, no hibridismo, nas bordas e fronteiras. Esses termos e noções têm
falado alto aos críticos da revista porque, com Serras da Desordem, Tonacci
parece atender a necessidade atual de novos xeques e choques na representação,
que não passam pelo realismo mimético com efeito de ausência de interferência,
nem pela “reflexividade-denúncia”, nem pelo meta-espetáculo que funcionaliza a
sua desconstrução. É uma outra coisa e essa outra coisa, mesmo caudalosa e ainda
desafiante, estimula os olhares da redação – e de todo um segmento multifacetado
da crítica nos últimos dois anos, tempo no qual andou circulando pelos festivais. Se
a imagem está em questão em ampla medida em Serras da Desordem, mas com
amplo efeito de experiência produzida por ela (a imagem), o jogo meta-imagético
de Não Estou Lá, de Haynes, parte da imagem do referente para multiplicá-la
e amplificá-la. Em vez do índio que interpreta a si mesmo, revivendo situações
vividas antes do filme, em um percurso de fusão na fissura e fissura na fusão,
Não Estou Lá propõe vários rostos, diferentes nomes e histórias autônomas
de um personagem cuja referência está fora do quadro. O campo visual e cênico
de Não Estou Lá nasce e remete à figura de Bob Dylan, sem seu nome ser
mencionado no filme, o que é um movimento de acúmulo e expansão em torno de uma
mesma imagem (ao contrário de Serras da Desordem, que é resultado de um
movimento de concentração da imagem em seu referente). O que há em comum, nesses
caminhos opostos, é a imagem como objeto, não apenas como meio de expressão e
narração, porque os dois filmes olham para si mesmos, sem deixar de olharem o
tempo todo para seus personagens. Um índio adaptado a sua
condição de perdido em um Brasil marcado na imagem pela violência contra a terra
e seus habitantes. Um astro pop em circunstâncias em facetas distintas e quase
autônomas. A esses dois mundos, um realista brasileiro, outro mítico americano,
somaram-se os fantasmas da História, da Segunda Guerra, reaparecidos como assombrações,
fora dos campos de concentração nazista, no interior do organismo de uma corporação
multinacional. A Questão Humana. França e Alemanha dos anos 40 em pedaços
reconstruídos e ainda assim opacos. Uma investigação. Descobertas de uma lógica
perversa a associar sistema político e sistema empresarial. Exclusão programada,
ciência da eliminação. Nicolas Klotz não coloca a própria imagem no espelho, mas
lida com uma imagem também, a imagem ausente, que tem de ser formada por depoimentos
e testemunhos. É sóbrio, formal, rigoroso. Confina os personagens no quadro, lida
com o quadro como uma prisão. O percurso do personagem é um passeio perdido por
esse presídio. Se
a narrativa de Klotz não se coloca em questão pelo simples fato de ser narrativa,
de lidar com imagens e com fatos na imagem (como se colocam Serras da Desordem
e Não Estou Lá), há um elemento forte no filme, que, em sua seleção entre
os mais destacados de 2008, deve ter falado alto aos críticos: o viés político
pelo qual é construído, colocando em julgamento a ideologia empresarial e toda
uma cultura da eficiência e da produtividade. Podemos até identificar no índio
de Serras da Desordem e no músico-poeta de Não Estou Lá protagonistas
com algo de puro mantido em suas vivências e ameaçado pelas experiências vividas.
A Questão Humana não tem, por outro lado, protagonista inocente. Ele não
está enredado em situações. Ele está atrás de um enredo, de um enigma e de uma
decodificação de dados confusos. Se há um jogo com a imagem nos dois primeiros
filmes, um de aproximação, outro de amplificação, em A Questão Humana o
jogo é de procura. É preciso somar uma coisa com a outra e chegar a uma síntese
factual e histórica na pesquisa pelos rastros. O mundo
humano da empresa. Não uma corporação de engravatados, mas uma fábrica tradicional
de mulheres com macacão. Esse é o espaço central de Falsa Loura, de Carlos
Reichenbach, que, em relação ao filme de Klotz, diferencia-se pelo acúmulo de
elementos, pela consciência de sua própria imagem (demonstração de consciência,
na verdade), pela produção de um mundo visual em sintonia com a imagem de um imaginário
popular. Se é sisudo e crítico o filme de Klotz, se tem uma denúncia a fazer sobre
o funcionamento da sociedade, o de Reichenbach é tributário da ambigüidade, bem
humorado e melodramático, duplicidade expressa de maneira poética em sua sequência
final, onde a expressividade da imagem de sua protagonista coloca interrogações
sobre seu percurso. Potência ou repetição? Ou potência na repetição? Talvez o
filme mais próximo de Falsa Loura dentre os mais votados seja Não Estou
Lá, não porque falem a mesma língua, mas porque demonstram em suas escolhas
um entusiasmo com a imagem e uma relação com ela livre o suficiente para fazer
dela um mundo em si, mesmo havendo uma ligação dessa imagem em si com seus modelos
(operárias do ABC, Bob Dylan). Paranoid
Park, de Gus Van Sant, sem perder suas particularidades, também lida, em sua
aproximação entre narração do filme e percepção do protagonista, com uma imagem
entusiasmada, termo desconfortante se levarmos em conta a ausência de entusiasmo
de seu personagem central. Se comparado às imagens de Falsa Loura e as
de Não Estou Lá, as de Paranoid Park são mais estilizadas, aproximando-se
da abstração, empregando a câmera lenta e a aceleração, mudando as texturas, subjetivando
o som. Nenhum dos filmes acima mencionados, exceção talvez feita a Falsa Loura,
adentram ao protagonista como Van Sant. Há uma subjetivação sensorial das escolhas.
O filme sente como seu personagem, ao contrário de Não Estou Lá, que não
encontra sequer o personagem, porque promove seu escape, de modo a jamais domá-lo
– embora não tire os olhos dele. De uma maneira muito genérica,
os cinco filmes seguintes de nossa lista, quando colocados lado a lado, apresentam
características múltiplas. Há o rigor no romantismo rasgado de Philippe Garrel
em A Fronteira da Alvorada, a economia de imagens de Claude Chabrol em
Uma Garota Dividida em Dois, o espetáculo da habilidade narrativa de M.
Night Shyamalan em Fim dos Tempos, a narratividade sem perfumarias e sem
desinfetantes de Paul Verhoeven em A Espiã e a fabulação assumidamente
artificial e violenta de Tim Burton em Sweeney Todd, que somados mostram
a abertura da redação para projetos mais austeros na linguagem e outros mais expandidos
em seus elementos.
Leia
trechos dos artigos publicados na Cinética sobre os dez filmes citados
Abril
de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
|