Última
Parada 174, de Bruno Barreto (Brasil/França, 2008) por
Rodrigo de Oliveira Entre
a conveniência e a usurpação
Como se poderia esperar
de mais um produto da família Barreto, a questão que move primordialmente a realização
de Última Parada 174 não é de cinema, mas de propriedade privada: a quem,
afinal de contas, pertencem as imagens que o filme tão despudoradamente arregimenta?
O procedimento de apropriação de uma memória visual muito recente e muito determinante
nos sentidos que condiciona parece nascer de sua matriz mais evidente, o documentário
de José Padilha sobre o mesmo assunto, mas aqui Bruno Barreto recorrerá a um almanaque
de referências muito maior. Última Parada parece
nunca superar o fato de que é um veículo de segunda mão, recapeamento de um caminho
já muito fortemente traçado e, por isso mesmo, precisa não só assumir o primado
de alguma novidade, algo que particularize seu olhar “cheio de frescor” sobre
uma cena já cansada, como também se mostrar bastante consciente dessa sua condição
de retardatário. Mas isso não explica totalmente a insistência do filme em evidenciar
que toda sua penetração neste universo é mediada, que todas as imagens que produz
só nascem a partir de outras já existentes, que não há mergulho possível num ambiente
já tão disponibilizado à iconografia pura. O que nos dizem, afinal, a introdução
do filme com a presença em tela cheia de uma novela dos anos 80 da Globo, ou ainda
o brilho refletido nos olhos do seqüestrador ainda menino assistindo ao clipe
de “Sou Playboy” do Gabriel O Pensador? Nada, não dizem nada, mas estão lá chamando
atenção para si e tentando dizer que têm sentido e peso (histórico, sobre a trama),
quando são, no máximo, pequenos tiques nervosos de uma estrutura em si despropositada.
Mas
Última Parada desce mais fundo nas referências. Quando houver uma passagem
de tempo entre a infância ainda inocente e o começo do banditismo, teremos um
teste de pontaria na favela com o mesmo filtro ensolarado e brilhoso que viramos
numa seqüência idêntica de Cidade de Deus. O grande plano circular em torno
da cabeça da estátua do Cristo Redentor (no momento em que o filme anuncia aquela
tragédia como carioquíssima) será uma cortesia dos arquivos de imagens publicitárias
da Conspiração Filmes, e até o capitão Ramiro de Tropa de Elite reaparecerá
aqui, mesmo ator, mesmo papel, negociando a soltura de reféns no Jardim Botânico.
Mas, talvez a mais curiosa das usurpações esteja na aproximação com o documentário
de José Padilha. Bruno Barreto dissera que Ônibus 174 investia numa perspectiva
nova para a velha questão da criminalidade ao propor a colocação do bandido de
hoje como a vítima de antes, e que sua ficção estaria a serviço de um mergulho
maior neste nó sociológico nacional. Ora,
é de se admirar que, no que tange a filmagem do seqüestro do ônibus, Última
Parada não se esforce minimamente em construir sua própria visão dos acontecimentos:
é como se ali já houvesse, de fato, um quociente comum, nada a ser visto de maneira
diferente, e por isso mesmo serão repetidas aqui sem meios-termos as imagens já
vistas e revistas por Padilha, vindas da tevê que transmitia a tragédia ao vivo
ou dos depoimentos presentes no documentário. Não interessa reconstituir aquilo
que já é um dado, apenas o que ainda permanece “secreto” – aí exatamente o ponto
em que Barreto pretende aplicar seu olhar cheio de frescor cinematográfico. Isso
nos leva à uma questão volta e meia aventada, mas nunca respondida de fato: sim,
Sandro parece ser uma vítima complexa das circunstâncias sociais que o transformaram
no assassino que finalmente se confirmou, mas nesta busca por uma figura vitimizada
que não escapa nem mesmo àquele que mais claramente carrega em si também (ou principalmente)
o vilão, como lidar com a vítima mais óbvia, com Geysa, a mulher morta por Sandro
na saída do ônibus? No cinema, pelo menos, lida-se de maneira
nenhuma: nunca haverá um filme sobre Geysa. A equação é simples, e explica porque
Bruno Barreto (ou, como dizem alguns, “o nosso cineasta clássico”) decidiu vampirizar
novamente a história de Sandro do Nascimento. Há nessa história a carga perfeita
de acaso, destino e coincidência que faria desse personagem a alegria do mais
dogmático dos roteiristas – com a diferença de que ainda é uma história real,
sobre cuja verdade não se poderá imputar a menor acusação de inverossimilhança
(a culpa de qualquer forçada de barra aqui é da vida, não do cineasta, que só
fez segui-la). Sandro não merece atenção porque seu drama ajuda a explicar o que
quer que seja das feridas brasileiras, é mais simples que isso: há nele um personagem
potencialmente cinematográfico, enquanto em Geysa só existe a estatística e a
nota de pé de página. O
que se segue aí é uma corrida maluca pelo que de pior se pode retirar da mais
complicada das histórias de determinismo social. Primeiro cria-se o gêmeo mau,
um personagem fictício com mesmo nome do protagonista, diferenciado em espírito
e propósitos pelo risível pseudônimo de Alê Monstro (contra o qual Sandro seria
o Alê Anjo). E então, na maratona perversamente lógica de Bruno Barreto, tudo
se explica e se encaixa como se o Deus do clássico-narrativo tivesse enviado Sandro
para nos fartarmos em sua trama. Não há espaço para drama, apenas para fatos,
e eles se encadeiam em regime de urgência – não são necessárias nem 24h após a
morte da mãe para que Sandro encontre seu destino nas ruas da Candelária, não
mais que um minuto para que reencontre seu algoz no instituto correcional, e mais
outro minuto para que o algoz vire melhor amigo, e na saída da prisão, a primeira
parada na praia já serve para reencontrar o amor de sua vida. É a lógica do “mundinho
pequeno” (uma fala de Alê Monstro no filme), do acaso providencial e de seu oposto,
o bom e velho shit happens. A seqüência no Instituto
Padre Severino, aliás, ecoa imediatamente em Juízo, filme de Maria Augusta
Ramos rodado no mesmo lugar, mas principalmente, preenchido da mesma questão que
colocamos no começo do texto: a quem, afinal de contas, pertencem essas imagens,
em especial, as imagens desses meninos infratores, desses que parecem hoje tão
disponíveis à representação no cinema? Há um ano atrás a Rede Globo produziu um
episódio de Linha Direta em que tratava da reconstituição da Chacina da
Candelária, com a dramaturgia que lhe é peculiar. O último plano do programa parece
exemplar dessa relação de propriedade que se estabeleceu: enquanto a chacina se
dava no fundo do quadro, uma câmera acompanhava num travelling frontal,
em câmera lenta, um menino de não mais de 5 anos correndo do massacre. Víamos
seus braços se mexerem como os de um atleta numa pista de corrida, o peito arfante,
eventualmente virando o rosto para ver em que pé estava o inferno do qual fugia.
Sob seus olhos lacrimejantes, surgia então uma música eletro-pop do Moby onde
se ouvia que “ninguém pode nos parar agora, porque todos nós somos feitos de estrelas”.
Em Juízo, a encenação dos dramas de cada um dos internos por outras pessoas
que não eles mesmos estava muito clara: era preciso substituir os infratores,
borrar seus rostos nos planos gerais ou trazer não-atores para interpretá-los
nos primeiros planos porque sua imagem pertence ao Estado, e é vedado a qualquer
um o direito de utilizá-la para o fim que for. É
de uma esquizofrenia política tão grande que a liberdade desses menores infratores
de um instituto correcional também signifique a liberdade de usurpação de suas
imagens, agora que o Estado não as controla mais. É justamente a condição de liberdade
do menino fugindo da chacina em Linha Direta que permite que o programa
aja de maneira tão torpe sobre sua existência. E o mesmo vale para a história
de Sandro. Envolvido por este salvo-conduto, Última Parada 174 pode agir
sobre a história de Sandro como bem entende sem nunca ter que prestar contas a
um mínimo de bom senso ou pudor porque, afinal de contas, trata-se de uma negociação
justa e igualitária entre dois sujeitos livres, um cineasta de um lado, um jovem
favelado do outro – e ajuda muito no estabelecimento desse contrato que Sandro
seja tão disponível à reprodução de sua própria imagem, seja no deslumbre com
um videoclipe de rap, com o encanto pela filmagem de uma equipe de tevê francesa
em seu abrigo de rua, no depoimento encapuzado que dá sobre a chacina, ou ainda
no leit motiv do “tem que aparecer na mídia, Alê, tem que dar show” ou
“um dia a senhora vai me ver na televisão” e “isso aqui não é um filme de ação
não!”, frases conhecidas de sua trajetória. Sandro do Nascimento pode ser a vítima
perfeita que esse cinema brasileiro canalha esperava desde Pixote, mas
no caso de todo o uso que foi feito de sua vida e de sua história, não há jeito:
nesse caso, cúmulo da canalhice, o culpado é ele mesmo. Abril
de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
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